Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti

A Folha mudou muito ao longo dos anos, mas continua inquieta

Relembrar minha carreira é perceber que o jornal deseja estar à altura desses tempos cada vez mais difíceis

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Entrei na Folha em 5 de outubro de 1977. Exercia a função de noticiarista e recebia um salário de 2.797 cruzeiros. É o que diz minha carteira de trabalho. Entrei por concurso: uma prova de velocidade na datilografia. A função não existe mais. Nem aquela Folha.

Pelo telefone, setoristas do jornal no Palácio dos Bandeirantes, no Departamento de Ordem Política e Social, na Assembleia Legislativa e outras repartições ditavam suas reportagens a noticiaristas.

Eles ganhavam os salários mais baixos da redação, mas o emprego foi uma bênção. Tinha 22 anos e não concluíra o curso de jornalismo nem o de letras; era processado com base na Lei de Segurança Nacional; acabara de mudar para a casa da minha namorada, Neusa.

ilustração de dois homens, um na década de 1980 e outro hoje, sentados em cadeiras e trabalhando, o primeiro na máquina de datilografar e o outro no computador
Ilustração de Bruna Barros para a coluna de Mario Sergio Conti de 13 de fevereiro de 2021 - Bruna Barros/Folhapress

Como o tempo ocioso era infindável, deu para ler quase todo Dostoiévski e colaborar com jornais alternativos —O Trabalho, Dois Pontos, Movimento. O tec-tec-tec monótono das máquinas, a luz baça e o café chocho cavavam vazios no cérebro. Era um alívio quando um setorista ligava.

Abriu-se uma vaga de repórter e fiz outro concurso: apurar o resultado do desfile de escolas de samba. A Pérola Negra foi injustiçada, um carnavalesco me explicou por que, fui aprovado e a vida melhorou: os repórteres eram a nata do jornal.

Batia o cartão de ponto às 16h. Recebia meia dúzia de linhas com a notícia a ser apurada e ia para a rua. Foi um período de greves, passeatas, assembleias; de ira nas periferias, reuniões políticas turbulentas, mesas redondas de empregados e patrões hostis.

A única orientação, feita no primeiro dia, era ser objetivo e não dar opinião. As reportagens também iam para outros jornais da empresa —Gazeta, Última Hora, Cidade de Santos, Notícias Populares, Folha da Tarde— e não dava para corrigi-las. Aprendia-se na marra a escrever rápido e claro.

Via-se in loco a loucura paulistana, as máquinas de moer os enjeitados, o se-virar dos remediados, o se-dar-bem dos barões. Via-se o despertar de categorias e classes nos estertores da ditadura, e a reação da casta militar e suas marionetes —policiais, empresários, pelegos, imprensa.

Como militava na Organização Socialista Internacionalista, trabalho e política se sobrepunham. De manhã, ajudava em piquetes de bancários, professores, eletricitários —frentes onde intervínhamos. À tarde, cobria as mesmas greves para o jornal. Com objetividade, sem dar opinião.

Até que, em maio de 1979, os jornalistas, essas lesmas, entraram em greve. Fura-greves fizeram com que arremedos de jornais continuassem a sair. A derrota foi humilhante e o passaralho vitimou mais de uma centena de colegas. Fui banido da reportagem e rebaixado a setorista na Câmara.

Agora era eu quem fazia ditados a noticiaristas. O trabalho não foi um tédio total porque deu para ler Michelet. E pude auscultar a alma da besta legislativa: a corrupção oficial, legal. É uma assombração da qual não se esquece, pois que vislumbrada desde então em todos os parlamentos.

O exílio chegou ao fim quando um amigo, Caio Túlio Costa, foi encarregado de editar a Ilustrada e me chamou. Copidesque, canetava textos alheios, dava títulos, resenhava, fazia artigos. Das 14h em diante.
Recoberta de pastilhas do chão ao teto, a Redação era um inferno, até pelo calor pré-ar condicionado. Nos fechamentos, todos fumavam, se esgoelavam e martelavam com furor as máquinas de escrever. “Desce!” era o grito triunfal para chamar os contínuos e mandar matérias para a gráfica.

Apesar da atmosfera deletéria, de trabalhar muito e ganhar pouco, a Folha tinha charme. Boa parte dos jornalistas integrava partidos clandestinos. Outros, chegados à vanguarda e ao rock, voavam alto na esquadrilha da fumaça. Debatia-se.

O pensamento politizado, bem como o temperamento artístico, logo suplantou a baixa boemia de alta octanagem alcoólica. A inércia e o cinismo entraram em parafuso. Havia inquietação, criatividade coletiva.

Ser jovem ajudava. Mas o decisivo era a eletricidade no ar: a ditadura seria derrubada, a energia nacional se soltaria e mil chances surgiriam. Era preciso ter um jornal à altura, inventá-lo.

Cismei de reinventar o Folhetim, suplemento dominical precursor da Ilustríssima que, largado às traças, definhava. Tanto enchi que o Caio topou que fizesse um plano (“de duas laudas, vê lá!”) e o levasse ao seu Frias —Octavio Frias de Oliveira, dono do jornal.

Ele leu o planinho com atenção, sublinhando frases. Afável, pôs a mão direita no meu punho esquerdo e disse: “É interessante. Mas você não fará isso”.

“Farei o quê, então?”

“Irá tirar os acadêmicos do Estadão e trazê-los para a Folha. Temos de ser o jornal da intelectualidade, da USP.”

“Mas como?”

“Telefonando para eles e convidando a escreverem aqui.”

Lá fui eu telefonar. Não devido a mim, que meses depois recebi um bom convite e saí do jornal, mas lentamente a intelectualidade passou a escrever na Folha, pautando debates culturais e angariando leitores universitários.

Fiquei 15 anos longe. Ao dirigir Veja, espicaçava o jornal, tentava superá-lo nos furos e na audácia. Otavio Frias Filho, o diretor de Redação, revidava. A tola disputa profissional desandou em desentendimento. Ficamos anos sem conversarmos.

Vim a escrever um livro no qual contava casos de corrupção na revista e fui demitido. Dois dias depois, Otavio telefonou e me convidou a ser repórter. Aceitei correndo. Fiz perfis, matérias sobre moda, natação, turnês de João Gilberto e Lula. Viajei muito, vi que o Brasil mudara — e, sem ruptura libertária, continuava mais ou menos o mesmo.

Cometi a bobagem de topar um convite que implicava em mudar para o Rio. Não deu certo e Otavio me chamou de volta. Para ter uma função fixa, me propus a resenhar todo e qualquer filme brasileiro: fiz em meses inimigos para a vida inteira.

Passei dez anos fora de São Paulo, colaborando com o jornal de forma intermitente. Voltei como colunista de política e estou na Ilustrada. Agora centenária, a Folha é outra. Mas segue inquieta, quer estar à altura desses tempos cada vez mais difíceis. Salve aqueles que a fizeram e fazem.

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