Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mario Sergio Conti

Lula trouxe vida a cemitério da política ao usar recurso da 'Odisseia'

Figura de estilo inaugurada por clássico grego é explicada em nova edição de 'Mimesis', sobre como a vida vira literatura

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Homero, Dante e Hegel vieram à mente, dias atrás, quando Lula disse que seus 580 dias de cana não lhe provocaram uma dor absurda –ao menos se comparada ao sofrimento daqueles que tiveram suas mães, filhas e famílias ceifadas pela peste.

Para Hegel, Dante trouxe "o agir e o sofrer" para perto de nós quando esmiuçou "ações e destinos individuais" da nossa "existência imutável". Na "Divina Comédia", de fato, o vivíssimo poeta florentino convive com Homero, Ulisses e tantos outros mortos.

A politicagem pátria, essa selva selvagem apodrecida pela peste, pareceu viva quando Lula rememorou seu destino individual. O que ele trouxe para o surrado jargão da política, contudo, foi uma figura de estilo mais velha que Dante, pois criada por Homero há quase três milênios.

O presidente falava dos Moros que o atiraram na masmorra, mas aí brecou e engatou a marcha à ré. Contou que Marisa, sua mulher, foi acossada a ponto de ter um AVC e morrer. Os Dallagnois, disse, o proibiram até de ir ao enterro do irmão. Cortou para hoje e informou: não quer vingança.

A "Odisseia" é toda ela feita de interpolações assim. No canto 19, Ulisses chega incógnito à ilha de onde saíra há anos. Sua velha babá, ao lhe lavar os pés numa bacia, reconhece a cicatriz que tem na perna. O que fará? Homero, serenamente, retorna ao passado. Conta como Ulisses, menino, feriu a perna e fez a cicatriz.

O interlúdio não é gratuito. Revela a infância do herói, esclarece que um javali o atacou. É só quando a ação retorna ao presente que a criada, assustada por se deparar com o antigo patrão, deixa o pé dele cair na bacia: splash! O efeito é tremendo.

serviçal lava os pés de amo em imagem com traços das ilustrações da Grécia Antiga
Ilustração de Bruna Barros para a coluna de Mario Sergio Conti de 13 de março de 2021 - Bruna Barros/Folhapress

Com a realidade apresentada assim, nada na "Odisseia" fica em segundo plano, na sombra. Sem subterfúgios nem símbolos, ela se passa num tempo que é informado pelo passado, encanta o presente e aponta para um futuro comum ao herói e ao leitor.

Foi isso que, à sua maneira, Lula fez no discurso. Trouxe vida ao cemitério da política porque mimetizou a realidade por meio de um recurso empregado por Homero. Não precisou nem ter lido a "Odisseia": ela está inscrita no nosso patrimônio cultural.

Homero veio logo à mente –assim como Dante e Hegel– porque ele é uma figura inesquecível de "Mimesis". Escrito pelo berlinense Erich Auerbach na Segunda Guerra Mundial, em Istambul, onde teve de se exiliar por ser judeu, o livro é uma joia rara e, o que é melhor, rediviva.

Publicado no Brasil em 1971, o grande livro está de volta às livrarias, agora numa edição à altura, a sétima. A editora é a mesma, a Perspectiva, mas o volume ganhou capa dura, letras maiores e apêndices imprescindíveis, passando de 507 para 637 páginas. Não precisa mais ser lido de lupa.

"Mimesis" –que vem do grego e significa imitação– estuda a representação da realidade na literatura. Cada capítulo analisa o trecho de um escrito que exemplifica a formação da consciência europeia. Começa com a cicatriz de Ulisses na "Odisseia" e vem até a Virginia Woolf de "O Farol".

Entre o épico e o romance, Auerbach fala da Bíblia, "Dom Quixote", "O Vermelho e o Negro", de várias obras primas ou secundárias. Sua erudição é assombrosa: sabe tudo em detalhe. Nem por isso entulha "Mimesis" de dados ou busca aprisionar a cultura ocidental num esquema.

É como Virgílio que ele pega o leitor pela mão e o guia pelo labirinto onde a realidade vira poemas, ficções, livros –vira passado, consciência. Nos prefácios à nova edição, Manuel da Costa Pinto e Edward Said explicam que a fluência de "Mimesis", que não tem uma nota de rodapé, se liga ao exílio de Auerbach.

Como não dispunha de grandes bibliotecas em Istambul, ele se ateve aos clássicos, prescindindo dos livros de apoio. Muito do que pôs em "Mimesis", portanto, veio do que sabia de cor, daquilo que amava e queria preservar, transmitir à geração que sobrevivesse à barbárie nazista.

"Mimesis" não é um baú de preciosidades inúteis. É uma obra viva, que ensina a prestar atenção na realidade, ilumina os modos de contar uma história, se entranha na psique coletiva de povos e nações. É um livro cujo método pode, deve, ser aplicado ao presente.

Se Lula teve há dias um lance de Ulisses, Bolsonaro tem tudo dos tipos ferozes do Antigo Testamento. Segundo "Mimesis", seus relatos "não procuram o nosso favor, como os de Homero, não nos lisonjeiam para nos agradar e encantar –o que querem é nos dominar, e se nos negamos a isso somos rebeldes".

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.