Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mario Sergio Conti

Arrigucci cruzou o Liso do Sussuarão numa edição de bolso de 'Grande Sertão

O livrão-livrinho de vida airada que conhecemos tem como charme tiro-e-queda um posfácio do escritor

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Mire veja: era para dar errado. Um romance denso e tenso, de para lá de 500 páginas, com um sem-fim de cacos arcaicos e uma sintaxe que é um ão e um cão, só pode ser lido num volume amplificado, amparado num rodapé de notas gênias, que expliquem os não-me-toques do texto.

É o que convém a uma edição decente de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. Pegaria bem, também, um bem fornido léxico. E uns acadêmicos que lavassem a seco, passassem a ferro, dessem lustro e luxo ao livro de gala, vestindo-o de papel-bíblia, fardão e capa de couro.

A pois: a Companhia das Letras cometeu a supiníssima heresia de publicar uma edição de bolso do “Grande Sertão”. Lançado em 1956, ele é hoje o romance mais estudado —em ensaios, pós-docs e teses— da nossa literatura. Mas estudo de bolso não é incongruência?

Homem branco usa terno preto e gravata-borboleta. Ele escreve num caderno
O escritor João Guimarães Rosa em foto sem data - Folhapress

Baratas, miniedições de maxitiragem se destinam a um público de massa —e massa quiçá ignara. Estariam mais afeitas à barulheira de Nelson Rodrigues, um carangonço de muita raposice. Mas “Grande Sertão”, vixe, é árido como a areia acinzentada que afoga cavalos no Liso do Sussuarão.

Entretanto, trata-se precisamente disso: popularidade. “Nunca se leu tanto o ‘Grande Sertão’ quanto hoje”, diz Matinas Suzuki, diretor da Companhia das Letras. “Fizemos a versão de bolso porque ficou claro que existe um público para o romance que vai além da edição de linha.”

Cabe o axioma de Walter Benjamin: “livros e prostitutas podem ser levados para a cama”. Não dá para se deitar com a edição de praxe do “Grande Sertão”, que foi feita para escrivaninha. Mas é um prazer percorrer na cama a versão de bolso, arte afável ao tato, simpática.

Por fim, o livrão-livrinho de vida airada tem como charme tiro-e-queda um posfácio de Davi Arrigucci Jr. Se a fortuna intelectual do livro só se avoluma, e ele segue sendo um repto para a crítica, o seu ensaio tem o valor aveludado de ser introdutório e de alto nível —harmonia rara.

Homem branco usa colete preto, camisa branca e óculos de grau enquanto fala em sala de aula
O professor Davi Arrigucci Jr. dá aula na faculdade de letras da Universidade de São Paulo; foto de 1995 - Matuiti Mayezo/Folhapress

Mire e remire: era para dar errado, e muito. Ao ouvir falar de um épico num arrebol de outrora, de dramas trans-transgressores, paridos em lírica biruta, e tendo por mote um pacto fáustico com um Cramulhão do sertão —é para pôr um pé-atrás e tanto, não?

Para piorar, nele pululam e copulam provérbios, quistos da sabedoria jeco-sertaneja: pão ou pães é questão de opiniães; toda saudade é uma espécie de velhice; a noite é uma grande demora; sertão é onde manda quem é forte; tanto um era ruim como o outro ruim era; o jagunço é um homem já meio desistido. E o pior dos piores: viver é muito perigoso. Arre!

Então, nonada: estúrdios do tempo, troços que boiam, quase-nadas que o caudaloso caudal do romance-rio arrasta. A corrente de lugares-comuns ganha a majestade de um soberbo fluxo lírico, um
São Francisco que aquece e esclarece. Mistérios das Gerais?

Nem tanto. Paulista de São João da Boa Vista, Arrigucci explica que “Grande Sertão” é o falatório de Riobaldo, matador jubilado que perora para um senhor que “ri certas risadas”. Numa nação oral, ora, que demora em se dizer nacional, o recurso é um achado, bricabraque raro.

Do que trata “Grande Sertão”? Da travessia de Riobaldo pelo grande deserto —o desertão— nacional e de si mesmo. É o sertão esturricado onde lutam e morrem Zé-Bebelo, Medeiro Vaz, Joca Ramiro, Selorico Mendes, Ricardão, Hermógenes. E Diadorim, contraparente de Iracema e Capitu.

Os jagunços Riobaldo e Diadorim —machos por dever de ofício— se apaixonam um pelo outro e geram calafrios de gelar espinhas no Brasil dos anos 1950. Ó xente: fica-se sabendo que Diadorim é mulher-fêmea travestida de homem, donzela guerreira que dava tiro sem dar na vista.

Com sensibilidade de poeta-príncipe, Manuel Bandeira desaprovou o desfecho. Escreveu a Rosa: “Preferia Diadorim homem até o fim. Como você disfarçou bem!”. O desenlace hétero aguou a tensão
homossexual do enredo, sem diluí-la de todo porque quem mói no asp’ro não fantasêia.

Que seja. O “Grande Sertão” não se faz de estrondos, ainda que o irremediável ocorra —é travessia. A maior delas é a que vai de banda a banda do Liso do Sussuarão. Pois ali esteve Arrigucci, de 78 anos, que tomou a primeira e a segunda dose da vacina.

Só então a peste o pegou e o levou à UTI, onde foi intubado. Ele costuma repetir uma frase de Diadorim a Riobaldo, incentivando-o a atravessar um rio sem saber nadar: “Carece de ter muita coragem”. Pois Arrigucci a teve, fez a travessia e está do outro lado do Liso, em casa.

Erramos: o texto foi alterado

São João da Boa Vista é uma cidade do interior de São Paulo, e não do estado de Minas Gerais. O texto foi corrigido.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.