Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Comuna de Paris, ocorrida há 150 anos, muda de sentido a cada efeméride

Primeiro governo popular tinha aspirações razoáveis, como ensino gratuito e Estado laico, mas que são até hoje negadas

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A Comuna de Paris prova a verdade do adágio que o passado é tão imprevisível quanto o futuro. Ela durou 72 dias, foi coberta pela imprensa contra e a favor, gerou milhares de processos judiciais: não lhe faltam testemunhos e documentos, mas a cada efeméride ela muda de sentido.

Prova também que é falácia dizer que a história registra apenas, ou primordialmente, a versão dos vencedores. Nem pensar. A formidável literatura a respeito da Comuna está toda ela alinhada aos vencidos, sejam eles militantes, memorialistas ou analistas no calor da hora.

Agora mesmo, o seu sesquicentenário é uma comemoração sóbria —tanto nos novos livros a seu respeito como nas cerimônias no Muro dos Federados, no cemitério de Père-Lachaise, onde o Exército fuzilou 147 insurgentes ao fim da Semana Sangrenta, em maio de 1871.

Se o seu aniversário não é uma festa popular como a que todos os anos celebra a queda da Bastilha, em 1789, ele também não é o silêncio ensurdecedor em relação à tomada do Palácio de Inverno, em 1917.

É com seriedade que se exalta o muito que a Comuna fez em poucos dias. E o que ela fez é projetado no futuro, como no canto de Jean-Roger Caussimon: “A Comuna luta e amanhã venceremos”.

Ela foi proclamada em março de 1870, após a derrubada do império de Napoleão 3º e a derrota ante a Prússia. O povo de Paris se recusou a depor as armas, o governo fugiu para Versalhes, começou a guerra civil: da república social, popular e urbana contra os reacionários, entreguistas e ruralistas.

A originalidade da Comuna foi ter sido um governo de, e para, trabalhadores. Dos 80 membros eleitos para a sua direção, a maioria era de assalariados: operários, artesãos, comerciantes, advogados, artistas. Nenhum latifundiário ou grande empresário.

Seus líderes eram jacobinos, anarquistas e socialistas, inclusive 14 militantes da Internacional, se bem que nenhum deles marxista. Em suma, uma salada. Seu líder natural seria Louis-Auguste Blanqui,
mas Versalhes prendera o atilado conspirador socialista.

Não há nem uma mulher entre os seus 80 líderes eleitos. Daí que nas últimas décadas, culminando com o sesquicentenário, tenha crescido a dimensão de Louise Michel, a militante de base que se politizou do exílio e virou estandarte anarquista. Hoje, ela é um ícone feminista.

Mais difícil é a apreensão das “petroleuses” —as militantes que teriam tocado fogo em prédios e monumentos quando os versalheses se aproximaram. Testemunhas da época falaram que elas foram inventadas pelos carniceiros para justificar os massacres. Mas agora se diz que as testemunhas mentiram para proteger as incendiárias.

O único monumento que teve sua destruição deliberada foi a Coluna da Vitória, na praça Vendôme, por ter sido construída com 1.200 canhões tomados pelos Exércitos napoleônicos na Batalha de Austerlitz —e portanto ser um símbolo da violência do imperialismo francês.

Gravura mostra destruição das barricadas da praça Vendome em 23 de maio de 1871, na Comuna de Paris - Reprodução

Ao tombar, a coluna esmagou Courbet, que defendeu a sua queda: o pintor de “A Origem do Mundo” foi preso e morreu no exílio. A coluna Vendôme foi reposta de pé e, numa homenagem carola à chacina, erigiu-se a basílica do Sacré-Coeur, o bolo de noiva de Montmartre —os dois monumentos parisienses mais pavorosos.

Courbet e Rimbaud foram exceções entre a intelectualidade francesa. De Flaubert a Zola, de Meissonier a Dumas fils e George Sand, a fina flor artística viu na Comuna uma massa bandida e andrajosa, a “canalha”, como lembrou o historiador Pierre Nora há pouco na revista L’Obs.

Quanto a Rimbaud, saiu um livro defendendo que há uma foto dele, de fuzil na mão, ao lado da coluna no chão. É forçação de barra: não há prova de que o poeta esteve em Paris naqueles dias, e o soldadinho da foto não é ele. Mas é fato: sua poesia só pode ser entendida por meio da insurreição.

As decisões da Comuna foram límpidas: ensino gratuito, laico e obrigatório; anistia das dívidas dos pobres; creches nos locais de trabalho; separação entre Igreja e Estado; abolição do Exército; ocupação das empresas, prédios e terras abandonadas; confisco das propriedades dos corruptos; salário igual para funcionários públicos e operários.

São aspirações razoáveis e, contudo, negadas até hoje —vide o Brasil. Negadas inclusive lá: Jean-Luc Mélenchon, o líder da oposição, lembrou que os gilets jaunes pediram exatamente essas coisas. Versalhês assumido e ranheta, Macron respondeu a eles com balas de borracha, cacetadas, processos e 800 penas de prisão.

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