Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti

Cortázar cria um labirinto que vem até o presente em 'Todos os Contos'

Nas espirais de seu dédalo, interpenetram-se jogo e história, real e surreal, espelhos límpidos e opacas paredes

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É uma caixa com dois volumes de capa dura que somam 1.147 páginas. Publicado pela Companhia das Letras, com novas e competentes traduções de Heloisa Jahn e Josely Vianna Baptista, “Todos os Contos”, de Julio Cortázar, é uma festa da imaginação.

Os livros acompanham, de 1945 a 1983, a trajetória de um titã da literatura dos labirintos contemporâneos. Embora os contos estejam fincados no aqui e no agora, suas raízes se prolongam pelos subterrâneos minerais rumo ao magma da história, quiçá do ser.

Se fossem isso, já seria muito. Mas certos relatos se desprendem do presente nu e cru: viver não pode ser só isso. Querem ir às galáxias, apesar de estarem atolados no brejo latino-americano, porque vislumbram o fantástico do que pode vir a ser.

carros parados no engarrafamento numa estrada, com pessoas sentadas e em pé na pista com expressão desesperançada
Ilustração de Bruna Barros para a coluna de Mario Sergio Conti publicada em 25 de junho de 2021 - Bruna Barros/Folhapress

Nas espirais do dédalo de Cortázar interpenetram-se jogo e história, real e surreal, espelhos límpidos e
opacas paredes, o voo de pássaros e rochas inamovíveis, corredores que se bifurcam e se afastam de um centro incerto, mas intuído em sonhos.

Em “Continuidade dos Parques”, um estancieiro lê um romance no qual o protagonista está prestes a ser assassinado pelo amante da mulher. O romance termina quando ele é trespassado pelo punhal do homem com quem sua mulher o trai. A facada também fecha o conto.

Em “Axolotes”, o narrador passa muitíssimo tempo contemplando os anfíbios de dedos finíssimos no fundo de um aquário. Obcecado, ele se transforma num axolote e, de dentro da caixa de vidro, vê a si mesmo se afastar —e então nasce “Axolotes”.

Em “Carta a uma Senhorita em Paris”, o herói vive na realidade: “um perfume, um som, um crescer de plantas, uma fotografia de um amigo morto”. Do nada, brota o prodígio: “Vomitei um coelhinho preto. E dois dias depois um branco. E na quarta noite um coelhinho cinza”.

Em “Distante”, uma dondoca de Buenos Aires escreve no diário que deveria ser uma mendiga em Budapeste. Viaja à Hungria e se encontra consigo mesma, a tal pedinte, numa ponte sobre o Danúbio. Quem é ela, patricinha portenha ou húngara miserável?

Em “O Perseguidor”, Johnny Carter —um músico genial inspirado em Charlie Parker, se bem que se possa ver nele, a posteriori e arbitrariamente, traços de João Gilberto: JC, CP, JG— percebe que o tempo se elastece quando anda de metrô. Ao destruir seu sax, e a si mesmo, sua arte pulsa.

Em “Casa Tomada”, um casal de irmãos vive de rendas. Ele, Ulisses, viaja pela literatura. Ela, Penélope, tricota pulôveres. Cômodo a cômodo, contudo, a casa é ocupada por ruídos de gente indistinta. Os irmãos se retraem para quartos desocupados. Não adianta, acabam tendo de sair da casa.

Tais irrupções do fantástico ensejam alegorias e analogias. Jaime Alazraki diz no posfácio de “Todos os Contos” que “Casa Tomada” provocou interpretações disparatadas. Os irmãos ociosos seriam a oligarquia decadente, expulsa da sociedade pela classe trabalhadora.

Ou então sacerdotes desbancados do templo tradicional por uma religião expansionista. Ou “Casa Tomada” fantasiaria a vida fetal de gêmeos, expelidos por um parto para a realidade. Ou mostraria a solidão argentina na Segunda Guerra e a história mundial a assediá-la.

Mesmo que a análise parta somente do que está escrito, e não do que o intérprete delira, os contos de Cortázar permitem construções imaginosas. Daria para trazê-los para outro tempo e lugar, fazer com que suas imagens agudas digam algo do presente semovente?

"A Autoestrada do Sul”, ao qual Godard alude em “Weekend”, é um de seus relatos mais conhecidos. Num fim de domingo, um congestionamento assombroso paralisa a autoestrada do sul, que leva de volta a Paris quem foi passar o fim de semana fora.

Não se sabe o porquê do engarrafamento a perder de vista. Passam-se as horas e os carros trocam boatos. Passam-se a noite, semanas, estações. Há gente que abandona o carro, morre, parte em busca do além-estrada, namora o motorista ao lado. Os automóveis andam metros —e param. Sempre.

O excêntrico adquire normalidade, enquanto que a vida anterior, em Paris, fica anômala. Um dia, o imenso cortejo se move. Mas logo para. E anda. Parece que a capital enfim se aproxima, mas “A Autoestrada” acaba antes que os motoristas cheguem a Paris, que voltem à vida irreal.

A aflição é semelhante à de quem está na autoestrada da bolsopeste. Em meio ao turbilhão de mortes, vacinas, uivos, passeatas, variantes, mentiras e denúncias, não se sabe se estamos parados ou andamos, e aonde, para que vida.

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