Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Primavera da pós-Covid pode ser tanto de Vênus quanto da Virgem

Sandro Botticelli, morto duas vezes, sumiu da história da arte por meio milênio e ressuscitou no século 19

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Sandro Botticelli morreu duas vezes. Uma vez na vida real e outra na arte. Vasari diz na “Vida dos Artistas” que ele foi um jovem “agradável e brincalhão”, em cujo ateliê “se faziam facécias e gracejos”, e também as “intrigas e chalaças” que o levaram à derrocada.

Ele foi cortesão dos Medici, a poderosa família florentina. A ponto de pintar uma “Adoração dos Magos” na qual os sábios do Oriente, e toda a sua entourage, são magnatas do clã biliardário. No quadro, Cosimo, o Velho, está mais garboso que o Deus-neném.

O artista se autorretratou no canto direito inferior, no gorducho que olha quem o olha. Ele e um irmão mais velho abandonaram o sobrenome, Filipepi, em favor do apelido “Botticelli” —os “Barricas”.

A “Adoração”, e o decorrente empurrão dos Medici, fizeram com que fosse chamado a pintar na Capela Sistina e recebesse uma torrente de encomendas. Bernard Berenson lista 186 obras suas, espalhadas por 64 cidades.

Ficou rico, mas perdeu tudo.

Vasari sustenta que sua queda se deveu à “vida desregrada” e ao fanatismo político-religioso: aderiu a uma seita de Savonarola, a dos “lamurientos”, e —como os bolsonaristas— não fez mais nada que prestasse. E conta seu fim: “velho e sem serventia, arrastava-se com duas muletas; doente e decrépito, morreu na miséria”.

Sua segunda morte foi tão mais cruel. Botticelli sumiu da história da arte por meio milênio. Ressuscitou no século 19 graças ao crítico John Ruskin e aos pré-rafaelitas. Ambos lhe valorizaram o traço estetizante, o pendor narrativo e a expressão estática das figuras.

Nada disso é propriamente renascentista. São posturas dos pintores de Siena e, por meio deles, do ideário da Idade Média. Seu passadismo abarcou dois procedimentos técnicos. Ele conhecia a perspectiva, mas a distorcia; não pintava em telas, atendo-se à têmpera.

Um exemplo da assimilação contemporânea de Botticelli encontra-se num selo lançado pelo correio americano em 1940 para comemorar, vê se pode, “os laços de amizade e boa vontade entre as nações das Américas do Norte, Sul e Central”.

O selo reproduz um retalho da “Primavera”, pintada em 1497 para um palácio de Cosimo. São as três graças que, com os dedos entrelaçados, descalças e de roupas diáfanas, dançam sem prestar atenção umas às outras. Ou melhor: fingindo dançar, elas posam imóveis para o pintor.

Vários anjos e figuras míticas dançando
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti, publicada em 17 de junho de 2021 - Bruna Barros

É essa a imagem de Botticelli hoje, estampada em lenços, almofadas, ímãs de geladeira, anúncios. Ela virou uma efígie que, no entanto, esvazia o sentido da “Primavera” —o de ser uma obra tensa e ambígua, na qual a repressão carola disputa o proscênio com Cupido, a encarnação de Eros na mitologia romana.

“Primavera” é uma alegoria pagã, a figuração de uma ideia da Antiguidade grega. Da direita para a esquerda, quem primeiro aparece é Zéfiro, o vento ainda azul de frio. Ele rapta Clóris, a ninfa que tenta se safar aos gritos, mas em cuja boca nascem os brotos da primavera que se avizinha.

A agressão e o casamento com Zéfiro se consumam, e Clóris se transforma na figura ao lado, Flora, a deusa das flores. Coberta de requintados adereços vegetais, ela é a figura moderna do quadro, uma promessa de harmonia e beleza.

A paisagem que a circunda, contudo, é soturna, hierática, artificiosa. Apesar de ter os lábios entreabertos, Flora emudece em meio à estação opressiva do artista a caminho da intolerância.

Botticelli foi ourives antes de ser pintor. Daí as joias minuciosas e o detalhismo dos 500 espécimes de plantas, segundo a contagem de Guido Moggi, ex-diretor do Jardim Botânico de Florença. “Primavera”, porém, não tem coelhos nem pássaros, símbolos da fecundidade no Renascimento.

Desbancando Flora, o centro da cena é tomado por uma diva que a tradição diz ser Vênus. Mas ela está sob um arco, como que dentro de um nicho de igreja. Seu gesto com a mão direita é o mesmo de Maria na “Anunciação” botticelliana, de resignação à ordem repressiva do arcanjo.

Não é, então, a deusa do amor, e sim a assexuada Virgem: a regressão pudibunda se impõe. Mas acima dela o pintor pôs Cupido, que dispara suas flechas eróticas de olhos vendados —e que Bruna Barros pôs aqui com a máscara contra a peste.

No extremo esquerdo, por fim, está Hermes, o deus lépido que leva mensagens com seus sapatos alados. Ele afasta as nuvens negras e vence o inverno.

Aqui e agora, não se sabe como será a primavera da pós-pandemia nacional —se de Vênus ou da Virgem, se renascentista ou fanática.

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