1º de julho
Querido diário, ninguém mais escreve diários e poucos leem os antigos. O dos irmãos Goncourt ninguém lê porque são 22 volumes, cobrindo quase a metade do século 19. Embora eles o classifiquem de “história íntima da humanidade letrada”, entenda-se: fofocas e ressentimentos de escritores franceses de segunda.
2 de julho
O livro é melhor que sua fama. Para usar imagens deles, é um romance de sala de espera, tem muita fanfarra e pouca música. Com a vantagem de ter uma bonomia triste, pouco relevo na expressão, uma platitude que gera a frieza de uma parede vazia.
3 de julho
Tem também rancor em relação aos grandes. Quando sai “Os Miseráveis”, eles dizem de Victor Hugo: “É engraçado alguém ganhar 200 mil francos lamentando as misérias do povo”. E de Anatole France: “Um pirralho cuja infância não passou de um longo resfriado”.
4 de julho
Não dá para distinguir Edmond de Jules de Goncourt. Os irmãos escrevem de maneira idêntica. A morte de Jules rende páginas tocantes. Edmond prosseguiu sozinho com o diário, que continuou igual. Um estudo sobre a colaboração fraterna (os irmãos Coen, os Taviani) seria interessante? Com certeza, não.
5 de julho
Diários têm uma construção retilínea, cronológica, com retornos pontuais ao passado e ralas elaborações de longo alcance. Daí não serem propriamente arte. Fatos e pessoas se sucedem sem deixar traço, desaparecendo no marulho do cotidiano.
6 de julho
Uma madame, dona de bordel, diz do filho: “Nasceu para ser duquesa”. Preciso usar essa gracinha com o André, ao apresentá-lo a um interlocutor desconhecido.
7 de julho
Os compatriotas não falham. “Uma das pequenas misérias da vida contemporânea: tivemos à mesa do jantar dois brasileiros que quebram a gramática como os macacos quebram cocos.”
8 de julho
O herói dos Goncourt é Flaubert, de quem falam mal com gosto. Ele é “pesadão, excessivo e sem finura”; “tem um fundo provinciano e gosta de contar vantagem”; é “áspero, forçado e sem graça”.
A maledicência se estende a seu estilo, que privilegiaria o ritmo em detrimento da naturalidade. O Flaubert deles é sexual. Diz que “as belas mulheres não devem servir à fornicação, e sim à estatuária”; “tem uma natureza tão particular que só um livro em latim é capaz de deixá-lo de pau duro”; dispensa as firulas de Renan, o historiador, que “parece uma senhora honesta num piquenique de putas”.
9 de julho
A edição que saiu há pouco, “Diário: Memórias da Vida Literária” (Carambaia, 426 págs), é preciosa. Jorge Bastos, o organizador e tradutor, fez uma seleta melhor que o original desmesurado.
10 de julho
Passar dos Goncourt para o Kafka dos “Diários: 1909-1923” (Todavia, 573 págs.) dá um nó na alma. A vaidade cede lugar à angústia, o pré-moderno ao moderno, o carreirismo mundano ao visgo dos dissociados de si. Seus diários são anotações de trabalho com esboços, cartas, pesadelos, sensações.
Descendo ao cotidiano, reiteram uma inadequação algo masoquista: “De novo a alegria de imaginar uma faca girando no coração”; “eu, criatura miserável”.
11 de julho
Suas frases se anulam: “O mundo formidável que trago na minha cabeça. Mas como libertar-me e libertá-lo sem me dilacerar? E dilacerar-me é preferível a contê-lo ou enterrá-lo”. Nesse mundo, a beleza é rara como “um colar de contas douradas em torno de um pescoço bronzeado”.
12 de julho
Vida e morte se anulam: o pai anuncia o nascimento do neto “como se o menino não tivesse apenas nascido, mas como se já tivesse vivido uma vida honrada e sido sepultado”. O pai tem “um pano úmido sobre o coração, ânsia de vômito, o caminhar suspirante para um lado e outro”.
13 de julho
A separação de Felice, a namorada, é pungente: “Eu a amo, até onde sou capaz disso, mas esse amor jaz enterrado e sufocado sob o medo e autorrecriminações”; “o coito como castigo pela felicidade de estar junto”; “ela será infeliz comigo, sou uma pessoa fechada, quieta, associal e insatisfeita”; “um matrimônio não seria capaz de me mudar, assim como meu emprego é incapaz de fazê-lo”.
14 de julho
Sobre o emprego, Kafka transcreve sua primeira frase numa reunião de trabalho: “Devo dar início ao debate desta noite lamentando o fato que ele aconteça”.
15 de julho
Querido diário, desculpe importuná-lo com baixarias. Mas a foto de Bolsonaro no hospital lembra o “Cristo Morto”, de Mantegna, noves fora a risada calhorda. Incrível sua capacidade de emporcalhar tudo.
Nunca mais a obra magna provocará deleite.
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