Um espectro ronda o Brasil, o espectro dos manifestos. É uma novidade. Por sermos um país de elite semiletrada e de plebe que pouco lê, prefere-se o fraseado oral, improvisado e impreciso, na medida para engambelar os incautos.
É uma boa novidade porque o manifesto é uma forma literária concisa e assertiva. Expõe uma ideia, argumenta e conclama à ação urgente. Elétrico, panfletário até, ele capta viradas de vento no ar do tempo.
Por falar com firmeza ao presente, o manifesto ecoa no futuro. “Senso Comum”, de Thomas Paine, prega a revolta aqui e agora, e não só na luta dos americanos pela independência. “Mesmo o melhor governo é apenas um mal necessário; no seu pior estado, é intolerável.”
“Eu Acuso”, de Zola, ataca o racismo e pede justiça desde 1898. O “Manifesto Comunista”, de Marx e Engels, guiou milhões por um século e meio. E Oswald de Andrade, no “Manifesto Antropófago”, ilumina o cerne do debate sobre o marco temporal das terras indígenas: “Tupi or not tupi, that’s the question”.
A novidade poderia ser excelente porque a vaga atual de manifestos provém de uma classe astutamente silenciosa, o empresariado, que só fala por meio de interpostas pessoas —governantes, intelectuais, parlamentares, colunistas. Afinal, o que pensam os donos do Brasil da barafunda em que Bolsonaro nos meteu?
Nananinanão. O manifesto da gente do dinheiro graúdo não chegou a ser publicado. Foi barrado pelos relinchos do cavalo que o presidente, à la Calígula, nomeou como cônsul da Economia. De rabo entre as pernas, o impávido patronato pátrio pastou, resignando-se a vazar seu textículo para a imprensa.
E, ainda por cima, tomou contramanifestos pela proa. O dos proprietários mineiros, mais para lá; o dos agronegociantes, mais para cá. Como contramanifestos são um contrassenso, ficou tudo por isso mesmo, o dito pelo não dito, uma maçaroca incompreensível. Não se sabe o que a burguesia pensa.
Ou melhor, sabe-se —mais ou menos— que o empresariado oculta o que pensa e escreve mal. Publicado nos jornais, o seu manifesto é geográfico e a-histórico, urbanístico e apolítico, inatual e atemporal.
A gororoba começa. “A praça dos Três Poderes encarna a representação arquitetônica da independência e harmonia entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, essência da República. Esse espaço foi construído formando um triângulo equilátero, cujos vértices são os edifícios-sede de cada um dos Poderes’.’
O manifesto não notou aquilo que João Cabral registou num poema sobre Brasília. Os seus palácios “de aço e de cimento” recobrem o “poroso quase carnal” da alvenaria do “Brasil antigo”; o Planalto, o Congresso e o Supremo são as “casas-grandes” de hoje, de onde se exerce o mando sobre as novas senzalas.
Seguem-se quatro parágrafos rebarbativos exortando as casas-grandes a se congraçarem. É um apelo velho como a Sé de Braga, recorrente na história da elite nacional: deixa disso, gente boa, vamos bater papo e pedir uma pizza. A prolixa peroração caberia numa palavra —conciliação.
A chique missiva do country club tenta dar um dó de peito na última frase. “Esse é o anseio da nação brasileira.” Espera aí. Fiesp, Febraban e congêneres falando em nome da nação? A petulância dos rapeizes subiu à cabeça? Perderam o senso do ridículo? Pfff.
Os intérpretes de desígnios dos manda-chuvas entenderam que o manifestinho não era a enésima exortação a que Bolsonaro se modera. Seria, em vez disso, um vibrante chega para lá no dito cujo, uma mensagem do PIB, uma ruptura —as coisas de sempre.
Acredite-se, por um minuto, nessa interpretação. O “recado duro” continuaria inócuo porque Bolsonaro está cantando e andando para pseudomanifestos. Sabe que não é hora de papagaiada. Ele tem uma ideia fixa e uma estratégia.
A saber: quer derrubar a democracia e se perpetuar no poder. Por isso dá três passos e recua um. Por isso provoca, insulta e diz o que lhe vem à cabeça. Testa as águas para, no momento em que estiver mais forte, dar o bote.
Ele botará suas tropas na rua no 7 de setembro para causar tumulto. Se não houver uma ação acachapante contra ele, destruirá a democracia. Concretamente: se não houver uma manifestação maior que a dos seus fanáticos, no mesmo dia ou pouco depois, o golpe estará mais próximo. Vem sendo assim desde sua posse.
O Evangelho de São João abre: “No princípio era o verbo”. Mas Freud corrigiu o evangelista e reescreveu o versículo: “No princípio era a ação”.
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