Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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João Sayad e Samuel Pozzi foram heróis possíveis de tempos impossíveis

Para além das diferenças evidentes, eles mantinham em comum a pureza e bondade genuínas

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Julian Barnes não recorre a artifícios literários por insatisfação com o realismo —sua verdadeira Penélope é Flaubert. O que ele faz é adequar o assunto de seus escritos ao estilo com que os narra. Seus romances e ensaios mimetizam, amoldam-se ao objeto.

Nesse sentido, “O Homem do Casaco Vermelho” (ed. Rocco, 272 págs.) é um livro ótimo. Ele tateia, tem estrutura frouxa, está cheio de “parece”, “talvez” e “é impossível ter certeza”, porque duvida das biografias convencionais e dos grandes afrescos históricos.

Seu tema ostensivo é uma figura esmaecida, o médico Samuel Pozzi, grã-fino e bon vivant. Mas, visto de perto, o livro é uma investigação da belle époque, que vai da desastrosa derrota francesa para os prussianos, em 1871, até a Primeira Guerra Mundial, outro desastre, só que agora vitorioso.

Foi uma época de decadência, diz Barnes, “de ansiedade nacional neurótica, até mesmo histérica, cheia de instabilidade política, crises e escândalos”. O que é útil aos brasileiros. Afastamo-nos do presente —de caminhões, motos, tanques— e avaliamos a frio o nosso declínio perene.

O escritor inglês não reduz a belle époque a esquemas. Fixa-se em gente que nem serve de símbolo para ela. Mais: vê o passado como terra incógnita, pois sua apreensão depende de documentos, jornais, cartas e diários pouco críveis —pois que produzidos por pessoas com parti pris.

Barnes começa a sua ruminação a partir de um retrato espetacular de Pozzi. Ele foi pintado com um soberbo robe escarlate por John Singer Sargent. A ênfase da tela está nas suas mãos de pianista, lânguidas e fortes —e na ponta do cinto, num sutil símbolo fálico.

Pozzi não era um virtuose do teclado, mas do bisturi. Era médico, cientista, criou a primeira cátedra de ginecologia na França. Como diz Jô Soares sobre sua especialidade, trabalhava onde os outros se divertem. O que lhe realçou a fama de sedutor —foi amante, entre tantas outras, de Sarah Bernhardt.

O doutor atendia o top da belle époque. Mas militou a vida toda no serviço público, criou hospitais, deu aulas, fez descobertas decisivas para a medicina. Racional, tinha horror ao nacionalismo tacanho que engolfou a Europa em guerras horrendas, nas quais tratou dos feridos de graça.

O motor de “O Homem do Casaco Vermelho”, então, é o nacionalismo de hoje —no seu caso, do brexit—, que atrita e arma os povos. A patriotada fraudulenta, cuja tradução bolsonarista é o anticomunismo, faz com que países regridam à idiotice belicosa da belle époque.

João Sayad, que morreu há dias, era também ele um homem de alma arejada. Servidor público por excelência, integrou governos do PMDB, do PSDB e do PT. Nas três vezes, pulou fora assim que sentiu o cheiro de maracutaias e de toma lá dá cá com as elites. Não acochambrava.

O que o movia era um reformismo forte, a vontade de melhorar a vida dos pobres concretamente, de acabar com a exploração logo. Com esse alvo, nunca parou de estudar e debater economia na USP, de ler e indagar, de escrever artigos clarividentes.

Ilustração de um sobretudo vermelho e uma camisa manga longa azul
Publicada nesta sábado, 11 de setembro de 2021 - Bruna Barros

Estava sempre de camisa azul alinhada e bem passada. Cativava devido ao riso fácil, à sua alegria de amar e ser amado, de pensar, agir e fruir. Nunca houve homem tão transparente quanto Sayad. Nem tão modesto. De raciocínios tão faiscantes quanto espirituosos.

Viveu o seu tempo até o talo, mas na contramão do declínio, da longa e lenta agonia nacional. Sem alarde, fez o que lhe foi possível. Com lógica, atento à arte, à metafísica e aos amigos. Era um homem do Renascimento em Cotia, onde passou em paz seus últimos dias.

Para além das diferenças evidentes, Sayad e Pozzi tiveram uma semelhança básica. Ela não se encerra nos anos patifes que lhes foi dado viver. Nem no charme pessoal. Situa-se num plano superior, na pureza e na bondade com as quais se entregaram aos outros.

No fecho de seu livro, Barnes arrisca uma síntese de quem foi, no fim das contas, o médico de casaco vermelho. Síntese que também veste com precisão, como uma camisa azul impecável, a personalidade de João Sayad. Felizes os que com ele conviveram. Lá vai: “Ele era racional, científico, progressista, internacional e constantemente inquisitivo; recebia cada novo dia com entusiasmo e curiosidade; preencheu sua vida com arte, livros, viagens, vida social, política e o máximo possível de sexo (embora exatamente quanto nós não possamos saber). Felizmente, tinha defeitos. Mas, mesmo assim, eu o apresentaria como uma espécie de herói”.

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