Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Homero só fez os versos da 'Ilíada' e da 'Odisseia' por causa da tradição oral

Poemas gregos eram declamados por cantadores ao longo de séculos até serem registrados como conhecemos hoje

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A “Ilíada” de Homero começa com o verso: “A cólera de Aquiles cante, ó deusa”. É significativo, e um mau sinal porque diz algo sobre a humanidade, que a primeira obra da literatura ocidental se inicie com uma palavra áspera. Não é amor, humildade, alegria ou inteligência. É cólera.

Como antigamente as primeiras palavras serviam de título e síntese, o poema fala da raiva que Aquiles tem de Agamenon, o rei grego que lhe tomou a escrava Briseis, e de Heitor, o príncipe troiano que matou seu amigo Pátrocolo. A ira do herói produz um tétrico banho de sangue.

A deusa que Homero conclama é Mnemosine, que está na origem da palavra memória. Ele quer que a divindade lhe relembre o ódio na Guerra de Troia. A alusão remete à chamada questão homérica: quem foi o poeta e como compôs a “Ilíada” e a “Odisseia”?

As respostas são debatidas há séculos. Alguns eruditos defenderam que a unidade interna dos poemas faz com que eles sejam necessariamente obra de um único autor, que teria vivido há cerca de 2.800 anos. Como não havia escrita, ele teria composto seus dois épicos de cabeça e de memória.

A “Ilíada” tem 16 mil versos; a “Odisseia”, 12 mil. Homero precisaria ter uma memória de elefante. Ou então tinha linha direta com Mnemosine. No grego antigo, “homero” queria dizer cego, o que explicaria ele saber tudo de cor: sua memória não seria distraída por imagens.

Outros classicistas disseram que a obra homérica foi composta por autores anônimos de poemas, hinos e elegias que depois teriam sido juntados, por diversos editores, em dois textos —não se sabe onde nem quando porque as duas épicas não têm manuscritos.

Ilustração que representa duas mãos com fios entrelaçados nos dedos
Publicada em 8 de outubro de 2021 - Bruna Barros

A questão homérica estava nesse pé até surgir Milman Parry, um californiano com um quê de herói da “Ilíada”. Estudou em Harvard e na Sorbonne, viveu na extinta Iugoslávia e morreu em 1935. Tinha 33 anos. A polícia atestou que atirou em si mesmo por acidente, mas sua filha disse que a mãe o matou.

Nuns poucos e breves ensaios, ele provou que Homero não existiu e seus poemas são fruto de um trabalho coletivo. O “Darwin dos estudos homéricos” foi pioneiro na análise da literatura oral, que estuda rappers, podcasts, palestras TED e ajuda a entender por que Bob Dylan ganhou o Nobel.

Saiu há pouco sua biografia, “Hearing Homer’s Song”, de Robert Kanigel (Knopf, 336 págs.). Foi elogiada na London Review of Books e na New Yorker, mas o resenhista do New York Times achou-a demasiado técnica —o que é tolo porque a descoberta de Parry foi, justamente, técnica.

A “Ilíada” e a “Odisseia” estão cheias de fórmulas repetidas, os epítetos ornamentais: o mar vinho-escuro; Ulisses, o saqueador de cidades; a Aurora de dedos de rosa; Atena, a de olhos glaucos. Por que, se eles não iluminam a cena nem os personagens, e nada acrescentam ao enredo?

Porque os epítetos espicham os versos para manter a métrica, o hexâmetro dáctilo, que tem seis grupos de sílabas a cada linha. Ao contrário do pentâmetro iâmbico de Shakespeare, ou do decassílabo de Camões, o ritmo tem vida própria em Homero, conduz a obra.

Isso ocorre porque seus poemas dependem da tradição oral, não foram escritos ou compostos por Homero. Eram declamados por centenas de cantadores ao longo de séculos e gerações, diante de milhares de pessoas, até serem registrados na versão que conhecemos hoje. Parry não se contentou em analisar os poemas vindos do passado. Fez duas expedições aos Bálcãs e gravou centenas de horas de performances de cantadores em tavernas e praças. Semianalfabetos, eles declamavam contos populares que nunca haviam sido postos no papel.

Um deles recitou milhares de versos na sua frente, dos quais não fora autor de nenhum. Mantinha a tradição, e a atenção dos ouvintes, por repetir o que ouvira antes. Quando não se lembrava, recorria a epítetos e improvisava. Era um Homero de verdade, ecoando o que os gregos fizeram por milênios.

A Grécia da “Ilíada” não está só na cólera de Aquiles. Está na forma literária com a qual a criação coletiva se expressou, bem como na comunhão entre cantadores e espectadores. A literatura não é produto de um indivíduo genial, do fictício Homero, e sim da sociedade.

Que forma lítero-social seguirá viva daqui a 2.800 anos, se a humanidade sobreviver? A dos cantadores de feira do interior do Nordeste? A dos mitos indígenas recolhidos por Lévi-Strauss? A do “Dossiê H”, o romance do albanês Ismail Kadaré que reconta a odisseia balcânica de Milman Parry? A da “Ilíada”?

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