Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Anne Carson parte de mitos gregos e surtos líricos para fazer poesia fraturada

Tradutora, crítica, ensaísta, poeta e helenista, autora canadense tem uma aura que oscila entre austeridade e desprezo

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De chofre e sem alarde, estilhaços da poesia implodida de Anne Carson começam a cair por aqui. A pequenina editora Jabuticaba publicou em 2017 "O Método Albertine", um panfleto crítico-críptico sobre a paixão em Proust de 45 páginas, 59 parágrafos e 17 apêndices.

O livreto fica de pé por ser uma autópsia da personagem que mais aparece no romance de Proust —2.363 vezes, em 807 páginas. Mas em 19% das ocasiões ela dorme. Albertine é uma ausência. A fissura da paixão é um oco que o amor não tapa, um caco opaco do afã pelo nada.

Deu-se o esperado: "O Método" naufragou sem choro nem vela na procela do mar editorial. Porque é preciso ter Proust na ponta da língua para se comover com a paixão por Albertine que, segundo Anne Carson, citando Mallarmé, é um cisne "no estéril inverno que em tédio resplandece".

retrato de mulher branca com cabelos grisalhos
A escritora canadense Anne Carson, autora de 'O Método Albertine' - Jeff Brown/The New York Times

Saiu agora o celebrado "Autobiografia do Vermelho" (editora 34, 189 págs). Quando publicado nos Estados Unidos, em 1999, o New York Times disse que era um dos livros do ano. O que não quer dizer fácil, longe disso. Se a vida atual se complica cada vez mais, sua arte a acompanha.

Anne Carson é uma professora canadense de 71 anos que, como ela disse, "ganha a vida dando aulas de grego antigo". É ainda tradutora, crítica de literatura, ensaísta, prosadora e poeta, além de helenista e latinista. Tem uma aura que oscila entre austeridade e desprezo.

O tráfego por gêneros diversos implica em tráfico de procedimentos. Seus livros justapõem erudição atemorizante e surtos líricos, detritos autobiográficos e argumentação abstrata. O todo resultante é inarmônico, arame farpado enrolado em si mesmo, protegendo não se sabe bem o que nem por quê.

Por exemplo: as referências a Artaud e Lênin, a Oscar Wilde e Beckett, a um sem fim de escritores antigos e modernos, não são explicadas nunca. São pedras do passado que o tempo não dissolveu. Mais elusivas que alusivas, preservam sua espessa opacidade —e a do presente.

O sucesso chegou quando Anne Carson já ia entrando nos anos. Foi o sucesso que cabe ao arrabalde periférico da poesia, essa arte moribunda, na cultura contemporânea: na forma de indicações ao Nobel, bolsas, lauréis acadêmicos. Enfim, toda a tralha de pouca ou nenhuma importância.

A fama a pegou porque foi tida como epítome da literatura da moda —a autorreferente, lúdica, escorada na autoficção, adiposa e paródica, cujos termos são permutáveis como mercadorias. Pós-moderna e a-histórica, em suma. O sucesso talvez seja fruto de um equívoco.

Porque Anne Carson nunca deixa de se fincar na história. Em "Nox", seu melhor livro, ela se coloca sob as asas de Heródoto, o pai da história, que a considerava "a coisa mais estranha que os humanos fazem". E a poeta completa: isso ocorre porque a história é "concreta e indecifrável".

gravura de vulcão em erupção
Erupção do monte Etna em 1637, em gravura do livro 'Mundus Subterraneus', de Athanasius Kircher, que agora ilustra a capa de 'Autobiografia do Vermelho', da poeta Anne Carson, na editora 34 - Divulgação

"Nox" —noite, em latim— não é bem um livro. É uma caixa com fotos de família, papéis amarelados, cartas, a tradução comentada do poema 101 de Catulo, selos, rabiscos. No seu coração está um poema de Anne Carson sobre o irmão, Michael, que sumiu da sua vida por mais de 20 anos.

O poema, que ela chama de epitáfio, é um misto de recordação, luto, lamento e elegia do irmão desconhecido. É também uma meditação acerca do impulso de prantear, de resgatar do submundo do esquecimento um ser que já não é mais —e do qual tão pouco sabia quando vivo.

A fisicalidade das coisas e da escrita confere ao conjunto uma tristeza —uma sensação de perda— que ultrapassa o registro discursivo. Faz com que, na matéria efêmera da arte, alguns indivíduos e a sua história fiquem concretos e indecifráveis. É uma caixa de mementos e momentos.

"Autobiografia do Vermelho" é mais convencional. Ou melhor: o livro concentra sua radicalidade no interior dos gêneros literários, embaralhando-os. Ele é um romance em versos, algo que nem existe mais. Como seu princípio construtivo são as elipses, o livro é um enorme hiato.

Parece complicado —e é mesmo. Não obstante, conta-se a história de Gerião, um menino que é abusado pelo irmão e a mãe é meio lelé. Ele se apaixona por Héracles, foge do Hades familiar, torna-se fotógrafo, é abandonado pelo namorado e perambula pela Argentina e o Peru.

Isso na aparência, pois o real se enraíza em mitos imemoriais. Nos fragmentos de Estesícoro, Gerião é o monstro alado e vermelho que Hércules (Héracles) mata no décimo dos seus 12 trabalhos. Entre o tempo do mito e o da história, pulsa a poesia fraturada de Anne Carson.

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