Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Bolsonaro toca trombeta a gás entalado no Inferno de Dante no centro da Terra

Nos 700 anos da morte do autor, algumas trilhas para percorrer sua obra passando por T.S. Eliot e Jorge Luis Borges

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O aniversário da morte de Dante, em setembro de 1321, foi comemorado com novas traduções e livros sobre o poeta. Às centenas, há ainda os que jazem em sebos e bibliotecas. A seguir, comentários sobre alguns deles. O seu objetivo é seduzir a leitora a passear pelo Inferno.

"Inferno" (Companhia das Letras, 556 págs), traduzido por Emanuel França de Brito, Maurício Santana Dias e Pedro Faleiros Heise. É como deve ser: bilíngue, com uma explanação geral e introduções breves a cada canto, as quais registram o quem-é-quem do que vem em seguida.

A linguagem do Inferno é direta e visual. Ela é entremeada por diálogos candentes entre Dante, Virgílio e as almas danadas. Narra-se uma viagem alucinante pelo abismo onde o sol se cala. Não tente entender guelfos e gibelinos. Atenha-se às imagens substantivas. Logo no início, perdidaço numa selva selvagem, Dante se depara com um lince, um leão e uma loba. Importa menos vê-los como alegorias (luxúria, avareza e soberba?) do que pelo que são: feras.

O Inferno é um funil imenso que se estreita rumo ao centro da Terra, onde está entalado Bolsonaro (brincadeirinha: é Lúcifer que lá está). Há muita gente boa no início da descida. São os coitados que, nascidos antes de Cristo, não foram batizados, como o próprio Virgílio.

O Todo Poderoso não perdoou e mandou a "imunda gente" para o Inferno. Talvez tenham direito a uma repescagem no Juízo Final. A ver. Não dá para confiar Nele, por definição inexplicável, mas sabidamente irascível.

A tradução é em ordem direta. Para manter a métrica, abusa das contrações: "alguma" vira "algua" (com acento til no u, que meu computador não consegue pôr), e "com a" se torna "coa". O que
estragou um lindo verso: "vi um coa testa tão cheia de bosta".

Como se vê, a trinca tradutora não apela para eufemismos. Um demônio chamado Malacoda —que se pode traduzir para Rabomau —ordena a dez diabos que acompanhem Dante. Como Bolsonaro, o chefe da trupe os arregimenta com um flato enfático, porque "fez do cu trombeta" ("del cul fatto trombeta").

"Selected Prose", de T.S. Eliot (Harcourt, 320 págs.). São três ensaios que servem de introdução à leitura da "Comédia". Argumentam que dá para se deleitar com Dante sem entendê-lo de todo.

Ilustração representando um animal demoníaco tendo fincada uma trombeta no ânus
Ilustração publicada em 3 de novembro de 2021 - Bruna Barros

Eliot sugere que se vá ao original e, com rudimentos do italiano, se cheque numa tradução o significado das palavras. A força da "Comédia", diz, está na concretude. Sua linguagem é mais simples e sucinta que a de Shakespeare. Modernista com mente medieval, Eliot compartilha a cosmogonia de Dante e o considera o último grande poeta europeu. Não é preciso ir tão longe. Fica aqui o testemunho: seus conselhos funcionam.

"Dante – A Biografia", de Alessandro Barbero (Companhia das Letras, 370 págs.). O autor é um historiador pop, especializado na Idade Média e com queda para questões militares. Essa curiosa mistura fez da biografia um best-seller na Itália

Como quase não há documentos sobre Dante, hélas, sua vida permanece um mistério. Mas é empolgante a descrição da batalha de Campaldino, na qual Dante combateu. E são reveladoras as explicações sobre a circulação do dinheiro em Florença. O peso do vil metal é grifado por Dante; no Inferno, afirma, "o não é sim quando o dinheiro dita" (na tradução de Italo Maura, na editora 34).

"Gassman Legge Dante", série de vídeos na internet. O enorme ator italiano introduz e recita um punhado de cantos. Dá um show de sonoridade expressiva. Como o rosto de Vittorio Gassman lembra o de Dante, parece que é o poeta quem declama.

"Vida de Dante", de Giovanni Boccaccio (Companhia das Letras, 103 págs.). O campeão dos superlativos escreveu a primeira biografia de Dante, que é rebarbativa e mais complicada que sua obra.

"Invenção", de Augusto de Campos (Arx, 278 págs.) Tem quatro cantos do Inferno e dois do Purgatório. São as traduções que melhor retêm o brio dantesco, entremeando o literal e o surpreendente. Como quando Dante conta o seu desmaio: "Caí como corpo morto cai".

"Nove Ensaios Dantescos", de Jorge Luis Borges (Companhia das Letras, 102 págs.). Maravilhoso, o livro vai e vem entre dezenas de autores e versos específicos. É com humor que Borges refuta Nietzsche,
para o qual Dante é "a hiena que versifica nas sepulturas".

"Inferno", edição comentada por Anna Maria Leonardi (Oscar Mondadori, 1.186 págs.). Serve só para quem for fazer pós-graduação em Dante. Ou para esclarecer o sentido de algum dado ínfimo —do qual, porém, outros eruditos discordam.

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