Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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'Robinson Crusoe' é arauto e aríete da globalização em sua mais nova tradução

Relido hoje, o primeiro romance inglês evidencia um realismo de longo alcance, com Robinson como um senhor de engenho

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Há 140 anos, um homem sentou para escrever um soneto "doce e ameno" relembrando o que sentia nos Natais dos seus "dias de pequeno", os da infância. Mas como a inspiração, "frouxa e manca," não o acode, saiu esse pequeno verso: "Mudaria o Natal ou mudei eu?".

Como o autor por detrás do homem é Machado de Assis, o poema afinal se completa. É o "Soneto de Natal", cujo arremate registra a passagem do tempo individual e do social. As sensações inefáveis do menino fazem com que o velho gere um verso, dúbio e indagativo.

Pouco depois, Machado reformulou essa questão no romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Quem faz a pergunta é o defunto autor, ao relatar —e meio se alegrar com— sua separação da amante, Virgília: "O eflúvio da manhã quem é que o pediu ao crepúsculo da tarde?".

Brás não se descabela, desesperado. Tranquilão, vai almoçar. O relato está isento de rabugens de melancolia. É sardônico, mescla pasmo e resignação, tem um tico de cinismo. Parece dizer: o tempo das tolices romanescas se foi, que venham a solidão e a velhice, apesar de ociosas.

As analogias entre história individual e social são forçadas, quando não absurdas. Ocorre o mesmo quando se tenta apreender os tempos idos e vividos. Mas algo do estupor de Machado no soneto e no
romance se repete no reencontro, tantas décadas depois, com "Robinson Crusoe".

Desenhos do artista plástico argentino Nicolás Robbio para nova edição de 'Robinson Crusoe' da Ubu Editora - Nicolás Robbio/Divulgação

Saiu uma edição impecável do romance de Daniel Defoe (Ubu, 430 págs.). A tradução, excelente, é do poeta Leonardo Fróes. Há ensaios de Rousseau, Marx, Joyce, Virginia Woolf, Coetzee e —last but not least— Sandra Guardini Vasconcelos, professora de literatura inglesa na USP. Desenhos e mapas de Nicolás Robbio completam a empreitada admirável.

Lido na infância, o que restou na memória de "Robinson Crusoe", escrito em 1719, foram as façanhas do náufrago durante 28 anos, dois meses e 19 dias numa ilha deserta do Caribe. O que a mente reteve foi a garra de Robinson, sua inteligência sagaz, como se vira e sobrevive num meio hostil.

Relido hoje, o primeiro romance inglês evidencia um realismo de longo alcance. Robinson surge como um senhor de engenho na Bahia que, ao incrementar seus negócios, faz uma viagem para comprar
pessoas no outro lado do Atlântico, na Guiné, e vendê-las no Brasil. Aí naufraga.

Ele é um herói escravista da expansão europeia, um colonizador de negros e índios, arauto e aríete de novos tempos —os da aurora da globalização. Seu empreendedorismo, visto antes como iluminador, não é uma manifestação do mítico espírito humano, e sim da razão instrumentalizada que espolia os nativos.]

A chave do romance está na relação entre Robinson e Sexta-Feira. Ao ser salvo pelo conquistador armado, o canibal se prostra no chão e, em um sinal de submissão, põe o pé do outro sobre a própria cabeça. É uma cena espantosa, à qual Robinson responde com uma crueldade manipuladora.

Ele não pergunta o nome do selvagem, designa-o pelo dia em que o viu. Faz-se chamar de Mestre —e "Master" é também Amo. Ensina-lhe um inglês tatibitate e não quer saber da sua língua. Nunca se refere a ele como um escravo, mas o trata assim. O civilizado oprime o primitivo.

O enredo e a prosa de Daniel Defoe fazem com que literatura e ideologia virem uma coisa só. O entrecho aventuroso retira Robinson das charnecas inglesas e o joga na África e na América, onde funda um entreposto da civilização do lucro e a propaga para além-mar.

A prosa é técnica. Enfatiza o uso de instrumentos, institui metas práticas, justifica a reaplicação do lucro.

O vocabulário e os valores que esposa são os da burguesia rompante (frugalidade, parcimônia, utilidade), que substituem os da nobreza decadente (luxo, ostentação, desperdício).

O romance analisa a religião e a família. Robinson catequiza Sexta-Feira e os bárbaros. Ao escapar, não retorna ao Brasil católico, onde o engenho rendeu e fez dele um homem rico: acha que a ética protestante se amolda melhor ao espírito do capitalismo.

Casa e tem filhos, mas a família cabe numas poucas frases anódinas. Na acumulação primitiva, o burguês é um solitário. O círculo histórico então se fecha —a ilha onde naufragou vira uma colônia inglesa, que Robinson governa.

Mudou o Natal ou mudei eu? Os dois. A história individual enriqueceu a percepção do romance. Mas o decisivo, para a apreensão da sua virulência, foi a continuidade —modificada pela história social— da situação colonial e da exploração do homem pelo homem.

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