Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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'Esse Exército não serve para nada', já dizia Nara Leão durante a ditadura

Série de Renato Terra sobre cantora contrapõe o cálido colorido do passado à brutalidade do golpe em preto e branco

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As imagens do passado têm a poesia da pátina que o tempo depositou nelas. Ver o Rio dos anos 1960 em "O Canto Livre de Nara Leão", no Globoplay, enche os olhos e a alma. São praias semidesertas, mar
luzidio, céu diáfano. Verdejantes, até as favelas parecem habitáveis. O Brasil melhorava.

Doce ilusão. No segundo dos cinco episódios, o diretor Renato Terra contrapõe o cálido colorido do passado à brutalidade do golpe em preto e branco. O Exército ocupa a cidade e distribui bordoadas enquanto vultos da República vociferam no parlamento. O país piorava.

A cantora Nara Leão em imagem da série documental 'O Canto Livre de Nara Leão', da Globoplay
A cantora Nara Leão em imagem da série documental 'O Canto Livre de Nara Leão', da Globoplay - Divulgação/Acervo Pessoal

Se a espectadora soma as imagens idílicas e as truculentas, e as contrapõe em bloco ao que se vê todas as noites nos telejornais, ainda assim o passado retém sua poesia. Embora o Brasil despencasse num abismo, ele fazia melhor figura do que a fossa sem fundo onde hoje jaz.

Com quartelada e tudo, as imagens d’antanho tinham encanto e eletricidade superiores às do Rio de agora, onde se amontoa a pátina imunda da miséria e do impasse. O atual sentimento que enche a alma é a nostalgia. Bons tempos, aqueles. Mas chega de saudade.

Por ter como alvo uma cantora formidável, e intelectual de primeira, "O Canto Livre de Nara Leão" acerta em cheio no presente. Ele revisita o passado para, nos seus momentos fortes, reavaliar um projeto musical e político que ajuda a pensar o presente.

Durante toda a série, Nara busca uma arte libertária. A postura começa na criação da bossa nova, no seu apartamento, onde jovens se reuniam para cantar, tocar e compor. João Gilberto, que recriava o samba, aparecia às vezes, mas dava o tom da mudança.

Era um ambiente leve, quase de arte pela arte, onde vigia a vontade de fazer uma música avessa à ditada pelas engrenagens do rádio, do disco e da televisão —da indústria cultural nascente. Não obstante, a bossa nova estourou comercialmente. Virou moda, mercadoria.

Na mesma hora, a cantora pulou do barquinho do amor, do sorriso e da flor com uma bomba verbal: "A bossa nova me dá sono". Acordara para o Brasil das favelas, carências e povo pobre. Deu um timbre político à arte de formas inovadoras, ao que aprendera com João Gilberto e outros.

Aproximou-se do cinema novo, que, como conta Carlos Diegues no seriado, tinha três objetivos: mudar o cinema nacional, o Brasil e o mundo. Parece piada. Mas querer melhorar a vida de todos é legítimo. A grande arte é ambiciosa. O progresso para valer, idem. Ao menos nos anos 1960, era assim. O mundaréu de miseráveis é uma sina? Não para Nara.

Levada por Carlos Lyra, que militava no Partido Comunista, ela frequentou o Zicartola, uma roda de samba com gente da velha (Cartola, Nelson Cavaquinho) e da nova guarda (Paulinho da Viola). Reencontrou ali, com andamento popular, o ambiente boêmio em que se fazia arte fora do mercado.

Ilustração representando para-quedas militares que sustentam um violão, um pincel e uma pilha de livros
Ilustração publicada em 14 de janeiro - Bruna Barros

Desse influxo nasceu o show "Opinião". Ele adaptava para um espetáculo musical a tática da esquerda da época. Nara representava a intelectualidade; Zé Keti, os deserdados dos morros cariocas; João do Valle, os sem eira nem beira do sertão. O trio cantava contra a ditadura.

Em "O Canto Livre", ao lembrar o show feito meses depois do golpe, Chico Buarque fala em "catacumbas" para relatar a "euforia" da plateia e seu desejo urgente de derrubar a ditadura. "Éramos todos subversivos", diz. Furo n’água. A ditadura viera para ficar.

Para Nara, o desencanto foi outro. Ao explicar por que, ela pensa na arte, na política e na mercantilização: "Depois que vi que o show era um sucesso, me deu certa frustração porque você faz uma coisa achando que vai acontecer algo, e o que acontece é um sucesso, um consumo".

A tensão entre música e comércio reaparece no episódio seguinte. Ela notou que, como com a bossa nova, as canções de protesto se tornaram estilo, eram mercadorias buscadas pelas gravadoras. Falou sobre o assunto com Chico Buarque e lhe pediu que, contra a maré, fizesse uma canção de amor.

Ele compôs "A Banda", que ganhou um festival e foi logo para o topo da lista dos discos mais vendidos. O sucesso fez com que fossem convidados a apresentar um programa na televisão. Enfim, fracassaram: em vez de animadores, eram "desanimadores de auditório".

Nada disso vale mais? Numa hora lá, Chico lê uma entrevista de Nara no auge da ditadura. Ela diz que "esse Exército não serve para nada"; que o Brasil precisa de "mais escolas, professores, técnicos e hospitais" e melhorar a "vida do operariado". Chico comenta: "Tudo continua valendo".

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