"Anéantir", o título do novo romance de Michel Houellebecq, significa aniquilar. A palavra tem também um sentido místico, o da diluição do ser no todo, como a gota no oceano. Mas a comunhão do átomo com o cosmos só se dá quando o ser vira nada –na sua morte.
Dados os romances anteriores de Houellebecq, era de se esperar uma aniquilação ribombante. Eles estão cheios de carnificinas, de descrições detalhadas de corpos retalhados a tiros. O seu pano de fundo filosófico é parecido, pois vai e vem entre o niilismo cru e o cinismo acre.
Seus livros pisam e repisam que o humanismo é uma hipocrisia; o amor e o sexo, ilusões; a família, uma masmorra de neuróticos. Avacalham políticos, crentes ("o islã é a religião mais babaca", disse), árabes e, claro, franceses bem pensantes e de boa cepa. Ninguém presta.
Os romances arrasa-quarteirão fizeram dele o escritor mais popular na França e no exterior, onde foi traduzido para 42 línguas. "Anéantir", um tijolo (734 páginas) caríssimo (€ 26), saiu no início do mês com tiragem de 300 mil exemplares; vendeu 75 mil no primeiro fim de semana.
O sucesso não se explica por Houellebecq ser mediático —ele parece uma bruxa— e polemista. Ele é imaginoso. Faz com que a leitora entre em ambientes misteriosos, apesar de ser um pesquisador relapso: "O Mapa e o Território" tem trechos copiados da Wikipédia.
Seu estilo emula o naturalismo velho de guerra. Tem horror a profundidades opulentas e ao enlevo metalinguístico com o próprio umbigo. A prosa-pocotó, contudo, pisoteia a tartufice do culto à República e ao ideário boêmio-burguês de uma parte (a que venceu) do maio de 1968.
O decisivo para o sucesso está na gana com que Houellebecq lanceta feridas purulentas da pasmaceira francesa. Ele zomba do deixa-pra-lá, do país onde se fala muito e se aceita tudo para que nada mude. Às vezes, é meio mediúnico. Como em "Submissão" e "Serotonina".
"Submissão" imagina um partido islâmico que, ciente da inércia francesa, elege o presidente. O romance foi publicado no dia do atentado de extremistas islâmicos ao Charlie Hebdo, que trazia na capa uma caricatura de Houellebecq. Doze foram mortos no Charlie, e "Submissão" foi para o primeiro lugar dos livros mais vendidos na França, na Alemanha e na Itália.
"Serotonina" zomba da elite parisiense entorpecida por antidepressivos. Enquanto isso, na França profunda das províncias, os serviços públicos são sucateados, e uma revolta fermenta, raivosa. Meses depois, estourou a rebelião antevista pelo romance, a dos coletes amarelos.
"Anéantir" não tem visão nenhuma, apesar de se passar na campanha eleitoral de 2027. O futuro é uma cópia desbotada do passado: Macron escolhe um candidato à sua sucessão que, sem surpresa, vence a besta-fera da extrema direita no segundo turno.
O livro não entra em ambientes secretos. Com um começo de romance policial, em torno de ataques terroristas, parece que contará como funciona a DGSI, a CIA francesa. Mas a trama é logo abandonada. O mesmo ocorre com os hackers satanistas que preparam os atentados. Não se chega a saber quem são.
O forte de Houellebecq é realçar contradições e então corroê-las. Só que trocou o ácido por xarope. Todo mundo presta: tecnocratas de Macron; fascistas de Le Pen; os pais, os irmãos e a mulher de Paul Raison, o protagonista; ministros, médicos; funcionários, passantes.
Algo inimaginável no Houellebecq de outrora acontece: uma imigrante mestiça é inteligente e sincera. A única que destoa da geleia de gente boa é uma jabiraca do jornalismo, dessas que mata o marido para obter um furo. Mas a serpente some sem como nem por quê.
O andamento meloso empapa a paisagem. A Paris pútrida e as províncias dilapidadas viram uma sequência de cartões postais que, ao som de uma sanfona ao longe, se compra à beira do Sena.
A diferença está no fundo sonoro, vindo de algum dicionário de citações. Tome Musset: "Cheguei tão tarde a um mundo tão velho". Tome Pascal: "Olhavam-se com dor e sem esperança". E tome Conan Doyle, que faz Sherlock Holmes bradar: "É hora de partir".
É hora de partir porque todos os personagens estão ótimos. Mas aí Raison, racional até no nome, descobre que tem câncer. Ó vida, ó céus, ó azar. Seguem-se 130 páginas de um melodrama médico nauseabundo.
É um pretexto para que a razão encontre o sentido da morte na mística da reencarnação: a gota se dilui no mar. E Houellebecq, o inconformado, conforma-se com o conformismo.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.