Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu Rússia

Bolsonaro nos põe em guerra como Putin faz com ucranianos evocando Stálin

Na cabeça do czar contemporâneo, a Ucrânia não é uma nação e não tem que ser independente porque é uma colônia russa

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A guerra na Ucrânia não começou agora. Ela destroça corpos há séculos porque é alvo da cobiça dos impérios de czares à la Putin e guerreiros frios à la Biden. Quem sempre sofre mais são os ucranianos, cujos cadáveres jazem em cantos patrióticos e filmes heroicos.

A Guerra da Crimeia, no coração do século 19, foi a maior carnificina no planeta desde as campanhas napoleônicas, derrotadas em Waterloo (1815), até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Morreu mais gente nela do que na Guerra da Secessão americana: 600 mil pessoas.

De um lado estavam os impérios britânico e francês. Do outro, o russo. No meio, o otomano, que no seu auge ia de Viena a Meca, de Bagdá a Argel. Tanto quanto hoje, a Ucrânia era tida pelos negocistas como um mercado; pelas potências, como colônia; pelos expansionistas, território a ser ocupado.

Ilustração representando duas criaturas monstruosas com muitos olhos e dentes afiados engolindo uma única cidade
Ilustração publicada em 25 de fevereiro - Bruna Barros

Em "The Last Crusade", o historiador Orlando Figes comprova que o motivo imediato da Guerra da Crimeia foi religioso: a disputa entre as igrejas católica e ortodoxa pelos lugares sacros do cristianismo.

O móvel ideológico pueril serviu de pretexto para que as eminências do mundo desencadeassem o morticínio imperialista. Foram elas, as sumidades: a pudibunda rainha Victoria, o hiper-retrógrado czar Nicolau 1º e o bandidaço Napoleão 3º.

(Bolsonaro 1º, o Rufião, condensa os traços mais nefastos dos três potentados belicistas; ainda bem que ele não tem nenhum poder fora do Brasil; mas somos nós, seus súditos, os "ucranianos" nos quais instila ódio, arma até os dentes e quer que guerreemos uns com os outros).

O conflito na Crimeia foi a primeira guerra moderna. Usou-se artilharia mecanizada, trincheiras, fotos, trens, telégrafos e cobertura massiva da imprensa —o que implicou patriotadas e manipulação da opinião pública. Foi como tal que ela deixou cicatrizes na cultura.

A batalha do Balaclava foi travada em 25 de outubro de 1854. Lorde Raglan, um general inepto que perdera um braço em Waterloo, mas nunca comandara mais que meia dúzia de peões, ordenou que uma brigada da cavalaria ligeira fizesse uma carga frontal contra a artilharia russa.

Levando tiros por todos os lados, mais de 600 garbosos cavaleiros ingleses morreram em poucos minutos. Um mês depois, Alfred, lorde Tennyson, publicou no Examiner a balada "A Carga da Brigada Ligeira", cujas seis estrofes rimadas e melodiosas repetem um refrão sombrio.

Poeta laureado, doce de coco da rainha Victoria, Tennyson fez da calamidade militar um clamor heroico. Glorificando o patriotismo, ele falou da "boca do inferno" e das "mandíbulas da morte" que mastigaram os ingleses. Da arrogância idiota de lorde Raglan, disse duas palavras vagas: "Alguém errou". E repetiu: "Avante, Brigada Ligeira!".

E avante ela seguiu: foram feitos três filmes baseados em "A Carga da Brigada Ligeira". No mais conhecido, Errol Flynn e Olivia de Havilland se espojam num romance xaroposo. No mais recente, Vanessa Redgrave e John Gielgud se atolam num nacionalismo melodramático.

O contra-ataque veio na revolta russa de 1905, quando marujos do encouraçado Potemkin se amotinaram e atracaram em Odessa, no mar Negro. Os ucranianos ocuparam a escadaria que liga a cidade ao porto para saudá-los. O Exército czarista abriu fogo sobre a multidão.

Com a revolução vitoriosa, em 1917, começou a guerra contra os bolcheviques. O Potemkin foi capturado e afundado pelo equivalente à Otan de então.

O cineasta Sergei Eisenstein deu o troco e filmou "Encouraçado Potemkin", obra-prima política que vergou Goebbels: "Ao ver o filme, alguém sem convicção política logo se converteria num bolchevique".

"Encouraçado Potemkin" se beneficiou do ambiente revolucionário. Ele tinha epígrafe de Trotski; e os sovietes, acatando uma ideia de Lenin, aprovaram a independência da Ucrânia. Mas tudo mudou rápido. Com Lenin morto, a epígrafe foi cortada, e Stálin passou a hostilizar a Ucrânia. A ponto de, nos anos 1930, com a Grande Fome arquitetada pelo stalinismo, milhões de ucranianos morrerem. Na Segunda Guerra Mundial, milhões de judeus ucranianos foram fuzilados pelos nazistas, à cata de "espaço vital" para a Alemanha.

Só em 1991, com a debacle da União Soviética, a Ucrânia conquistou a independência. Os Estados Unidos se aproveitaram e expandiram a Otan. Por fim, na véspera da invasão, Putin anunciou que Lenin e os sovietes erraram; que Stálin estava certo: a Ucrânia não é uma nação, não tem que ser independente porque é uma colônia russa.

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