Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti
Descrição de chapéu Rússia

Como Ucrânia e Brasil firmaram aliança regada a vodca e brados contra Otan

Banquete na colônia de férias do sindicato ferroviário teve instantes tensos, mas futebol e anedotas salvaram a reunião

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Sem se vexar em fazer papel de palhaço pela enésima vez, Bolsonaro arrotou na Rússia que resolveu a crise ucraniana. Mas como, do Potomac ao Volga, todo mundo sabe que o bucéfalo é exibicionista, a bazófia não alterou em um milímetro a ordem internacional.

No caso das relações entre a Ucrânia e o Brasil, não seria uma eructação malsã que as poria em risco. As correntes de ferro que unem os dois países foram soldadas lá, num acordo firmado à beira do mar
Negro. Foi poucos anos depois de a Ucrânia proclamar a independência, em 1991.

A missão brasileira, com dois integrantes, ficou uma semana em Odessa. Ela era chefiada por um André Conti ainda menino, mas já então um diplomata melindroso. Ficamos num hotel estatal que mergulhara há pouco, e canhestramente, na bravia onda da privatização.

Ilustração representando prédios, casas indústrias, casas, árvores e pessoas
Ilustração publicada em 18 de fevereiro - Bruna Barros

Só alguns quartos haviam sido arrendados à iniciativa privada. Ao percorrer corredores sem fim, passava-se por gabinetes de dentista, manicures e microdachas de sacerdotisas de Lelya, a deusa local da beleza, que convidavam os passantes para libações lúbricas.

Os quartos não tinham calefação. Era Natal, que lá se comemora no Dia de Reis, auge do inverno. Fazia um frio que até Papai Noel amaldiçoava. Os vidros trincados da janela eram remendados com fita crepe. A dupla tropical dormia vestida, inclusive com o casaco.

Ao ligar o chuveiro, a água corria para o quarto e o encharcava. Numa manhã, quando tomava banho, o telefone tocou. Como os odessenses são bilíngues, André não entendeu nada em russo e ucraniano.

Minutos depois soaram pancadas na porta. Atendi pingando, enrolado na toalha, chapinhando no carpete. Entrou uma meia dúzia de homens enormes, com casacões, botas e gorros de pele. Em vez de Kalashnikovs, portavam champanhes e buquês. Ué?

As negociações nem sequer começaram: não íamos além de "spasiba" (por favor) e "pajalsta" (obrigado), e eles retrucavam com "please" e "thank you". Ríspida, a delegação ucraniana se retirou. Relações rompidas?

Voltou uma hora depois. Veio com Michel, professor de francês na universidade. Ele esclareceu que era uma comissão do brioso Sindicato dos Ferroviários da Ucrânia. Alertada por um camarada que encontraríamos em Moscou, o Ilya, ela viera nos recepcionar.

Embarcamos em dois Ladas que pigarreavam sem parar e passeamos pelos arredores. Enquanto nós pouco sabíamos da Ucrânia, eles estavam bem informados sobre o Brasil. Tanto que perguntaram de Garrincha, e não de Pelé.

Fomos à colônia de férias do sindicato. Emborcamos piscinas de champanhe georgiano e toneladas de quitutes típicos. O único assunto sério no banquete foi a filiação à Otan, hoje no centro da pendenga russo-americana.

Os ferroviários não só eram contra a entrada da Ucrânia na coalizão americano-europeia como achavam que devia ser extinta. Ela fora criada para se contrapor à União Soviética e a seus satélites europeus.
Como deixaram de existir, a Otan tinha de acabar também.

Terminado o festim pantagruélico, fui instado a fazer um brinde. Ergui-o para saudar a imorredoura amizade entre os povos ucraniano e brasileiro —e, gulp, vodca da boa goela adentro. Do lado de lá veio uma ode ao pacto ferroviário-jornalístico. Seguiram-se uns 30 brindes movidos a vodca. Za zdorovye!

Alegrinho, brindei a um herói comunista nascido na Ucrânia, Trotski. Bum! Houve uma explosão e a luz apagou. Do fundo do breu total, uma voz cavernosa decretou: "Agora vocês vão ver como tratamos os cães trotskistas". Ficamos estáticos até Michel informar que era brincadeira.

Contudo, não brindaram a Trotski. O ambiente desanuviou quando um dos sindicalistas disse que, assim como os brasileiros contavam piadas de português, os ucranianos tinham anedotas com moldavos. Vamos trocar algumas, sugeriu.

Que sufoco. André começava: "Ó Manoel, sabes lá o que é um trocadilho?". Eu traduzia para o francês e Michel para o ucraniano. André prosseguia: "Em ‘Pharmacia’, o P não soa, e em Epitácio... Pessoa!".

Nossas piadas tinham notas de rodapé ortográficas, históricas e geográficas. As deles eram curtas e simples, mas sem graça: "Por que os moldavos não comem picles? Porque a cabeça não entra no jarro". Pfff. O tiroteio se repetiu até eu pedir uma trégua.

Ao sair, os ucranianos nos atacaram com bolas de neve. Revidamos sem dó. Cientes da derrota, foi a vez de eles pedirem paz: vamos à ópera.

Embebidos em neve e vodca, lá fomos nós ver "Carmen" em russo. Despedimo-nos aos brados de "Abaixo a Otan!".

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