A invasão da Ucrânia pôs em primeiro plano a ideia de nação. Os horrores da guerra, com seu cortejo de milhares de mortos e expulsos de casa, mostram que a identidade nacional é mais marcante que as imagens moldadas por classe, gênero, raça, religião e sexualidades.
Não que essas últimas sejam desimportantes. A exploração, o machismo, a intolerância religiosa e o racismo permeiam as nações e definem a vida contemporânea.
O racismo mostrou sua cara na guerra, com negros e indianos sendo postos no fim da fila dos que tentam fugir da Ucrânia. Nações europeias, que ontem mesmo fechavam suas fronteiras a refugiados africanos e árabes, hoje abrem suas portas aos que perderam a paz e a pátria —ao mais de 1 milhão de ucranianos em debandada, mas brancos e europeus.
Polônia e Hungria, governados por déspotas à Bolsonaro, bajulavam Putin, seu herói na repressão a gays, lésbicas e ao casamento de homossexuais. A família é sagrada, oravam em uníssono. Na hora que os tanques rolaram sobre a Ucrânia, mudaram de lado.
Não é só hipocrisia. É realpolitik, alinhamento com nações poderosas, que podem lhes franquear acesso a mercados, ao mundo material das necessidades.
Acharam mais proveitoso, então, se colocarem a reboque da União Europeia e dos Estados Unidos. Reconheceram assim que os interesses econômicos comandam a vida das nações, têm primazia em face de outras questões.
Embora muito diferentes, o Brasil e a Ucrânia têm semelhanças na economia. São países pobres, subalternos e de industrialização precária. Contudo, são potências no agronegócio e na mineração. "Celeiro da Europa" há séculos, a Ucrânia é grande produtora de grãos, frutas e fertilizantes.
Ela tem enormes reservas de lítio, crucial na renovação energética ora em curso no planeta. E tem expertise na informática: o país é um paraíso de criptomoedas, presta serviços informáticos a empresas europeias e americanas. Não foi apenas a ideologia da restauração czarista, pois, que pôs Putin em pé de guerra, mas a ânsia de obter a riqueza ucraniana.
A riqueza das nações é desigual. As fortes buscam subjugar as fracas. Literalmente, é o imperialismo velho de guerra. O imperialismo não vive sem militarismo, sem que o recurso às armas marque presença —seja na ameaça permanente, estocada em paióis e quartéis; ou, como agora, nos bombardeios russos.
A nação não é uma entidade fixa. Existem diferenças categóricas entre seu povo e seu Estado. Na Rússia, há tensão entre as duas instâncias. O apoio popular à invasão é nulo. Ao contrário, milhares de russos saíram a campo para protestar contra ela, mesmo sabendo que seriam presos.
O que Putin expressa não é a vontade do povo. É a do Estado, que em qualquer nação é um aparato da classe dominante. Ao que parece —porque a censura é férrea—, o Kremlin é ocupado por uma camarilha que lembra a brasileira: oligarcas, nababos, larápios, maníacos, generais.
Já na Ucrânia o povo se identifica com o Estado, personificado no presidente Zelenski. A situação é outra num bolsão russófono no leste da nação. Mas, durante séculos, até Putin invadi-lo em 2014, o povo de diferentes idiomas e origens ali convivia em paz.
Uma nação não é um amontoado de indivíduos. Tem uma dinâmica própria que é imediatamente reconhecida, malgrado as diferenças regionais. Todavia, a ideologia do individualismo antipopular vem se espalhando pelo Ocidente nas últimas décadas.
Uma boa introdução a essa ideologia, na ótica francesa e cultural, está em "O Eu Soberano – Ensaio sobre as Derivas Identitárias" (Zahar, 300 págs.), da psicanalista Elisabeth Roudinesco. Ela vai aos anos 1970, à "cultura do narcisismo", de Christopher Lasch, para investigar o caldeirão onde agora fervem gêneros, raças, costumes e religiões.
Ateia, racionalista e republicana, Roudinesco crê em valores universais, na unidade dos seres humanos, ainda que eles sejam diversos e não ajam como espécie. Nesse sentido, ela cita um trecho de Montesquieu que vale transcrever na íntegra. Nele, o filósofo iluminista fala de nações e indivíduos.
"Se eu soubesse de alguma coisa útil à minha nação que fosse danosa a outra, não a proporia a meu príncipe, porque sou homem antes de ser francês. Se soubesse de algo que fosse útil à minha família e não o fosse à minha pátria, tentaria esquecê-la. Se soubesse de alguma coisa que fosse útil à minha pátria e prejudicial à Europa, ou prejudicial ao gênero humano, eu a veria como um crime."
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