Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Como o bigode, que está em desuso, ponto e vírgula é espécie em extinção

Com tantos serviços prestados aos maiores nomes da literatura, o sinal é contraponto em tempos de exclamação

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O ponto e vírgula corre risco de extinção: o simpático sinal de pontuação não foi usado nos últimos três dias na Folha. Até os colchetes, mais afeitos à linguagem matemática, apareceram; ponto e vírgula que é bom, nenhunzinho.

Em contrapartida, abundam os pontos de exclamação, enterrados no jornal pelo bate-estaca de colunistas fanfarrões. Sem argumentos, e de maus bofes, infligem seu ponto de vista aos gritos: "Quem entende disso sou eu, sua anta! Vê se te manca!".

Adicione-se ao estrondo exclamativo o ponto final por extenso e, pronto, eis Bolsonaro, o Mandão. "E ponto final!" urra ele após excretar meia dúzia de mentiras, barrando no berro qualquer diálogo. O ponto de exclamação impõe ordem unida, sujeita.

Desenho que representa uma forma semelhante a um rosto humano com sinais tipográficos como ponto final, virgula e travessões
Ilustração publicada em 27 de maio - Bruna Barros

Escasseiam também as reticências, irônicas ou não; o travessão, que abre uma fala ou completa o escrito; até os parêntesis, que encapsulam outro sentido, como faz Drummond em "(não cantarei o mar: que ele se vingue de meu silêncio nesta concha)".

O emprego cada vez mais rarefeito de sinais de pontuação significa algo? Perguntar isso não é procurar pelo em ovo? Afinal, pontos e vírgulas são ciscos que, ao se soltarem da casca imaculada do texto-ovo, entram no olho e atrapalham a leitura...

A pontuação é uma forma histórica. Os livros de Aristóteles, Platão e da Bíblia não tinham pontuação; nem minúsculas; nem espaço entre as palavras! ​Deus não escrevia certo por linhas tortas; escrevia embolado. O evangelho de João começava assim:

NOPRINCÍPIOERAOVERBOEOVERBOESTAVAEMDEUSEOVERBOERADEUS.

Foi com tijolos textuais como esse que se construiu o saber ocidental. Porque, como disse Aristóteles, OHOMEMÉUMANIMALPOLÍTICO. Gregários, os homens adotam convenções para se comunicar e mudar; mudar inclusive as convenções.

Foi o que fez Aldus Manutius, o editor veneziano que, em fevereiro de 1494, inventou o ponto e vírgula.
Quem conta sua história é a professora Cecelia Watson, num livro delicioso, "Semicolon: Past, Present, and Future of a Misunderstood Mark" (Ecco Press, 224 págs.).

Renascentista, Manutius queria popularizar o conhecimento. Não havia padronização nem academias que policiassem o idioma. Era uma algazarra. Cada um pontuava como lhe desse na telha.

Ao publicar "O Etna", ensaio em forma de diálogo sobre o vulcão, de autoria do cardeal Pietro Bembo, Manutius teve a divina ideia de captar a elocução do distinto prelado. Criou o símbolo gráfico que marca pausa maior que a da vírgula e menor que a do ponto.

Com a obra pronta, vieram as regras: o ponto e vírgula separa orações numa mesma frase; organiza listas; economiza conectivos (e) ou adversativas (mas). Permaneceu perene, porém, o preceito básico —registrar um silêncio específico, advindo da linguagem oral.

A engenhoca de Manutius ganhou o mundo. "Moby-Dick" tem 4.000 pontos e vírgulas, informa Cecelia Watson, "um a cada 52 palavras". Machado de Assis, mais comedido e certeiro, mereceria o título de mestre do ponto e vírgula na periferia do capitalismo.

Henry James não escrevia sem ter ao lado da escrivaninha um barril de pontos e vírgulas. Chegou a inverter a ordem de importância entre pontuação e palavras. Numa rara entrevista, ao Times, insistiu para que o repórter anotasse sua "pontuação, bem como as palavras".

A coisa mudou no século passado. Orwell, Barthelme, Chandler e tantos outros desprezaram o miniponto de Manutius. Vonnegut teve o topete de dizer que pontos e vírgulas são "hermafroditas que não representam absolutamente nada".

É meio assim no Brasil. Nos seis contos exímios que Dalton Trevisan publicou e distribuiu no início do ano, num livreto de 32 páginas, não há um único ponto e vírgula. Dalton deixa que seus personagens e leitores deem uma paradinha onde bem entenderem.

Em contrapartida, o ponto e vírgula virou emoji, um derivado dos signos de pontuação. Dois pontos e vírgulas, com um travessão no meio, mostram uma carinha derramando uma lágrima de cada olho ;–;. Sozinho, representa uma piscada ;.

No ensaio "Sinais de Pontuação", Adorno prefigurou esse uso figurativo. O ponto de exclamação é um dedo em riste ameaçador, disse. Os dois pontos abrem a boca, "e coitado do escritor que não souber saciá-los". "Marotas e satisfeitas", as aspas "lambem os lábios".

Para Adorno, o ponto e vírgula parece "um bigode caído" e passa "um sabor rústico". Como quase ninguém mais tem bigode, o ponto e vírgula, com tantos serviços prestados, está à beira do desuso.

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