Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti
Descrição de chapéu Livros

'Diário de um Louco' traz contos de autor chinês escritos antes da revolução

Livro de Lu Xun mostra empenho de um artista em contar a seus conterrâneos as tensões entre senhores e subalternos

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É algo a ser feito. Nem sempre porque senão fica chato. É proveitoso ler de fio a pavio um livro sem saber nada, ou quase nada, do seu autor e do ambiente histórico, social e artístico no qual foi escrito. Quanto mais remoto, melhor.

A leitura às cegas acende a imaginação. Faz com que se volte à pureza das primeiras leituras, as da infância, quando a mente livre preenche os espaços opacos gerados pela falta de referências e contexto. Fundem-se num mesmo lance encantamento, curiosidade, interpretação e crítica.

Além de fazer sentido em si, o texto não pode ser chato. Deve aliciar, enredar, levar o leitor ignorante, mas seduzido, à página seguinte, e assim sucessivamente até a última. Isso ocorre em "O Diário de um Louco - Contos Completos", de Lu Xun (Carambaia, 568 págs.).

Ilustração em aquarela de uma vila pitoresca com telhados turquesa e laranja, colinas arborizadas distantes e uma casa asiática com cerca e arbustos floridos em primeiro plano
Ilustração para coluna de Mario Sergio Conti de 11.jun.22 - Мария Тарасова/Adobe Stock

Ele reúne 33 contos, publicados entre 1926 e 1936. Escritos em chinês, foram traduzidos por três homens e duas mulheres de nomes brasileiros. A coordenação e a revisão técnica das traduções são de Ho Yeh Chia, professora do Departamento de Línguas Orientais da USP.

São contos realistas que se passam em vilarejos do meio rural. Talvez por isso surjam tantos animais (coelhos, gatos, patos) e se dê ênfase à natureza (a luz da lua, o amanhecer, o vento, chuvas). Os relatos dizem respeito ao presente, com recuos comedidos ao passado.

Pelas datas de publicação, vê-se que foram escritos depois da proclamação da república, em 1911, que pôs fim a milênios de dinastias imperiais; e antes da tomada do poder pelo Partido Comunista de Mao Tse-tung. Indiretamente, o interregno tumultuado se faz presente nos contos.

A leitura é instigante. Entra-se num universo a anos-luz das tradições greco-romanas, judaico-cristãs e afro-ameríndias. Fala-se de taoísmo e de budismo, de imperadores e linhagens perdidas no tempo, de gente pobre que bebe à beça, faz troça e troca sopapos. Não há nada de folclórico.

O que parece haver é o empenho de um artista em contar a seus conterrâneos as tensões entre senhores e subalternos, tradição e modernidade, entre uns pobres diabos e outros diabos pobres. No mais das vezes, os relatos são cruéis e terminam de supetão, deixando enigmas no ar.

O autor, Lu Xun, conhece a literatura europeia. O título do livro (e algo do enredo) é o mesmo do célebre conto de Gogol. Talvez não seja um conhecimento sólido: ele atribui a Dickens um livro de Conan Doyle. Não dá para perceber uma influência precisa nos seus temas e estilo.

O melhor conto é o mais longo, "A Verdadeira História de Ah Q", de 1921. Com 60 páginas, o narrador começa por falar da dificuldade de se escrever sobre um sujeito de nome inexplicável; e cita Confúcio: "Se o nome não está correto, a palavra não faz sentido".

Ah Q não tem família nem amigos nem nada. Faz trabalhos esporádicos, enche a cara, perambula, dorme num templo. É o tolo que todos desprezam. Todavia, ele se tem em alta conta porque cultiva um mecanismo psicológico que lhe serve de compensação.

Se um poderoso o esmurra, vê na humilhação um sinal da sua importância, já que foi alguém de posses que o atacou. Ou ele mesmo se estapeia ainda mais, e assim infla a autoestima. Ou esquece o caso —porque o esquecimento, pensa, é um "tesouro herdado de seus antepassados".

Com isso, a submissão e suas autojustificativas ficam históricas. E talvez tenham alcance social porque a vila inteira as aceita e compartilha. A comparação é absurda, mas Ah Q lembra o protagonista de "Estorvo", de Chico Buarque —o ser que se desfaz e não acaba, segue se decompondo.

Há uma série de episódios do mesmo teor, espezinhante. Lu Xun os narra de modo objetivo e coloquial, como se fossem corriqueiros —o que faz supor que esteja sendo irônico. Até que se escutam os ruídos de uma revolução que se aproxima. A aldeia se põe em polvorosa.

É uma revolução real, a republicana. O clima do conto se inflama. Há saques, medo, ameaças. Os poderosos tentam se amoldar à situação, e mudam súbita e sutilmente de lado. Confuso e oportunista, também Ah Q quer aderir aos revoltosos. Debalde.

É preso. Ordenam-lhe que assine um papel, mas não sabe escrever. O parvo acaba desenhando um círculo: é sua confissão e sentença de morte. É levado pela vila, e "o público seguia a carroça como formigas".

O herói da resignação imagina que o fuzilamento era justo: "Que motivo haveria para executar alguém que não fosse mau?". Já a conclusão do narrador acerca de Ah Q é inapelável: "Como era ridículo!".

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