Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Brics Xi Jinping

China é vulnerável aos caprichos de um homem

Esforços de Xi para se perpetuar no poder mostram "putinismo com características chinesas"

Presidente chinês Xi Jinping - Mark Schiefelbein / AP

Às vezes um anúncio consegue ser ao mesmo tempo previsível e chocante. Era evidente já muito tempo que o presidente Xi Jinping, da China, não pretendia deixar o poder —de fato, não poderia fazê-lo. Ele criou inimigos demais, especialmente por conta de sua campanha de combate à corrupção, o que dificultaria sua saída pacífica ainda que ele quisesse deixar o posto— o que não parece provável.

Mas o anúncio de que a limitação ao exercício de mais que dois mandatos consecutivos como presidente da China seria revogada ainda assim causa choque. O que antes era provável agora é fato. Xi descartou a tentativa de Deng Xiaoping para institucionalizar a limitação dos poderes dos líderes chineses - ela mesma causada pelos excessos absurdos da era de Mao Tsé-Tung. O que está voltando a surgir é o governo por um homem forte - a concentração do poder nas mãos de um líder. O que estamos vendo agora parece ser uma espécie de "putinismo com características chinesas".

É verdade que, mesmo antes dessa decisão, Xi tinha a possibilidade de manter por período indefinido seus postos como líder do partido e comandante em chefe das forças armadas. A limitação de mandatos se aplicava apenas ao posto de presidente, intrinsecamente menos poderoso. Mas se ele tivesse perdido a presidência e retivesse seus demais postos, restaria uma pontinha de dúvida sobre quem está no comando. Xi não gostava disso, ou provavelmente imaginou que esse fosse um risco que não poderia correr. Ele quer poder total e irrestrito.

Como se pode justificar uma decisão assim momentosa - conferir a um só homem poder absoluto sobre uma superpotência ascendente, por período indefinido? É interessante que o comunicado a respeito não busque fazê-lo: "A emenda é uma mudança vital, feita com base em longa experiência quanto ao partido e quanto ao país, para melhorar as instituições e mecanismos pelos quais o partido e o país exercem liderança".

Por que essa mudança é vital? Porque a "implementação da estrutura será conducente à liderança centralizada e à autoridade do Comitê Central [do Partido Comunista Chinês], e à orientação do país e da sociedade pelo partido". Assim, o partido controla o país e Xi controla o partido - e dessa forma tudo mais, indefinidamente. E isso é bom porque... bem, porque isso é bom.

O abandono do princípio da liderança coletiva e o retorno à autocracia negam as esperanças de todos aqueles que acreditavam que a China, em rápido desenvolvimento, avançaria em direção à democrata, como, digamos, a Coreia do Sul nos anos 80. Mas a renda per capita chinesa, em termos de paridade de poder aquisitivo, já é um pouquinho mais alta que a da Coreia do Sul naquele período. Hoje, as únicas autocracias ricas são os países exportadores de petróleo. Cingapura pode ser vista como uma democracia "guiada".

De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), a renda per capita chinesa, em termos de paridade de poder aquisitivo, é hoje a 84ª do planeta. A posição do país no ranking fica entre a do Brasil e a da República Dominicana. Mas se sua ascensão econômica continuar, a China será um gigante de alta renda de um tipo novo.

Será que o avanço do poder de Xi poderia colocar essa ascensão em risco? Possivelmente. A autocracia expõe um país aos caprichos irrestritos de uma pessoa. À medida que os anos se tornam décadas, uma concentração de poder como essa tende a causar problemas, à medida que o líder se distancia mais e mais da realidade.

Putin começou como reformista econômico, mas agora criou uma cleptocracia estagnada. O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente. O povo chinês tem a experiência do Grande Salto Adiante e da Revolução Cultural, como lembrete dessa grande verdade.

Mesmo assim, experiência e teoria também sugerem que é possível para líderes sábios e previdentes, sujeitos a restrições mínimas aos seus poderes, promover o desenvolvimento de seus países. A autocracia pode funcionar. Mas é, no mínimo, um sistema de alto risco, mesmo em um país com a tradição de uma burocracia de alta qualidade, como é o caso da China. É uma questão conhecida como "o problema do mau imperador". A autocracia pode ser efetiva, mas também pode conduzir a excessos grotescos.

E isso também desconsidera as qualidades morais da democracia, um sistema político que reconhece a dignidade do indivíduo como cidadão com direito a agir na esfera pública tanto quanto na esfera privada. Mas muita gente na China deve sentir que a democracia está em péssima forma, neste momento. É muito mais difícil argumentar em favor da superioridade do sistema democrático, quaisquer que sejam suas virtudes teóricas, depois dos desastres das duas últimas décadas - a guerra do Iraque, a crise financeira e a eleição de Donald Trump, um homem tão palpavelmente inapto para sua posição.

Mas eu continuo a acompanhar a opinião de Winston Churchill: "Ninguém afirma que a democracia é perfeita ou infalível. Já foi declarado, na verdade, que a democracia é a pior forma de governo exceto por todas as outras que costumam ser tentadas ocasionalmente". Em última análise, desde que a democracia continue democrática, com eleições livres e razoavelmente justas, os líderes mais desgastados e mais inadequados podem ser tirados do poder pacificamente. Isso é inestimável.

A volta da China ao domínio por um homem, por prazo indefinido, sob a estrutura onipresente do Partido Comunista, significa que voltamos à era da competição entre sistemas, entre o capitalismo democrático e - embora isso possa soar estranho (e é) - o capitalismo comunista. Uma implicação é que as democracias ocidentais precisam encarar a China não só como grande potência em ascensão mas como competidor estratégico. É essencial para a China se manter como parceira quanto a desafios como a mudança no clima, o comércio internacional e a segurança mundial. Na verdade, em muitas dessas áreas, a direção tomada pelos Estados Unidos de Trump na era do "América Primeiro" é mais preocupante.

Mesmo assim, ao lidar com questões como o investimento estrangeiro direto, transferência de tecnologia e o papel das empresas chinesas, os líderes ocidentais precisam ser cautelosos. Nessas áreas, as decisões das empresas chinesas estão sujeitas a forte orientação pelo Partido Comunista e pelo Estado chinês. Isso não pode ser ignorado. Para as democracias, a China autocrática é uma parceira mas não uma amiga.

Mas a mais importante implicação da direção política que a China vem claramente tomando é o que isso significa para a democracia ocidental. Ela está sujeita aos males da demagogia, plutocracia e, especialmente, miopia. A democracia precisa melhorar seu desempenho se quer reconquistar o prestígio perdido, não só aos olhos do mundo mas aos de seus cidadãos.

Isso vai exigir um estudo minucioso e autocrítico sobre como as instituições centrais do Estado, da política e da mídia trabalham nos sistemas democráticos existentes. Será necessário examinar de novo a teia de atitudes e restrições que ajuda a fazer com que um sistema de competição política pacífica produza os resultados que as pessoas desejam. O desafio não é fácil. Mas uma vez mais se tornou nossa maior tarefa.
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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