Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times

Por que tão pouca coisa mudou desde o crash financeiro

Se quem acredita na economia de mercado e democracia liberal não propuser políticas, os demagogos os varrerão

"Cá estou eu de volta ao Tesouro... mas com uma grande diferença: em 1918, a única ideia das pessoas era voltar ao que existia antes de 1914. Ninguém se sente assim com relação a 1939, hoje. E isso fará uma grande diferença, se pensarmos bem". John Maynard Keynes escreveu isso em 1942. E de fato essa mudança de atitude fez diferença. Depois da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, as pessoas queriam mudança.

E a conseguiram. A França define o período que se seguiu como "les trentes glorieuses" [os trinta anos gloriosos].

Investidor reage ao acompanhar a queda nos preços de ações na Bolsa de Valores de Kuala Lumpur (Malásia), em função da crise financeira dos Estados Unidos em 2008
Investidor reage ao acompanhar a queda nos preços de ações na Bolsa de Valores de Kuala Lumpur (Malásia), em função da crise financeira dos Estados Unidos em 2008 - France Presse- AFP

A estagflação da década de 1970 gerou uma contrarrevolução; a década de 1980 viu uma mudança radical nas ideias sobre o papel do Estado e o dos mercados, os objetivos da política macroeconômica e o papel dos bancos centrais. O objetivo era, uma vez mais, o de promover uma transformação fundamental.

Assim, o que aconteceu depois da crise financeira mundial? Os políticos e as autoridades econômicas tentaram nos reconduzir ao passado ou buscaram criar um futuro diferente? A resposta é clara: ao passado.

Seria justo afirmar que eles tentaram buscar um passado melhor. Foi o que aconteceu em 1918. Então, o planeta havia acabado de sair de uma guerra devastadora. Isso resultou em novas ideias sobre a paz –"segurança coletiva" e a Liga das Nações. Mas todos queriam um retorno à economia do pré-guerra, especialmente ao padrão ouro.

Em 1918, portanto, o que o mundo queria era voltar a uma versão melhor do passado, nas relações internacionais. Depois da crise de 2008, o objetivo era voltar a uma versão melhor do passado em termos de regulamentação financeira; todo resto deveria ficar como estava.

O principal objetivo da formação de políticas posterior à crise era o resgate; estabilizar o sistema financeiro e restaurar a demanda. Isso foi conseguido usando os recursos nacionais em apoio ao sistema financeiro em colapso, por meio de cortes de taxas de juros, expansão imensa dos déficits fiscais em curto prazo mas limitando a expansão fiscal em longo prazo, e pela introdução de novos e complexos regulamentos financeiros. Essas medidas preveniram um colapso financeiro (ao contrário do que aconteceu nos anos 30), e geraram uma recuperação (fraca).

Observe o quanto essas ações aderiam ao consenso de política econômica anterior à crise. Os bancos centrais agiram como emprestadores de último recurso, o que é seu papel. Também desempenharam papel dominante na estabilização macroeconômica, como o pensamento anterior à crise sugeriria. Seu principal instrumento continuou a ser a administração das taxas de juros, ainda que no caso incluindo juros de longo prazo, porque as taxas de juros de curto prazo chegaram a zero. Pouco depois que o pior da crise passou, a política fiscal se voltou à austeridade. O sistema financeiro não mudou muito, ainda que sua alavancagem tenha diminuído um pouco, os requisitos de liquidez tenham aumentado e a regulamentação tenha ganhado força. Os esforços pela redução da dívida no setor privado foram modestos.

A crise financeira representou um fracasso devastador do livre mercado, que se seguiu a um período de desigualdade crescente em muitos países. Mas, ao contrário do que aconteceu na década de 1970, as autoridades econômicas mal questionaram os papéis relativos dos governos e dos mercados. A sabedoria convencional ainda considera que "reforma estrutural" no geral seja sinônimo de impostos mais baixos e desregulamentação do mercado de trabalho.

Preocupações quanto à desigualdade foram expressadas, mas pouco se fez de concreto. As autoridades econômicas no geral não deram atenção à perigosa dependência da demanda quanto a um endividamento cada vez mais alto.

Monopólios e atividades em que alguém precisa perder para que outro ganhe são onipresentes. Pouca gente questiona o valor das vastas atividades do setor financeiro que continuamos a ter, ou reconhece os riscos de novas crises financeiras graves.

Pouco admira que os populistas sejam populares, diante dessa inércia, sem mencionar as experiências miseráveis de tantos cidadãos desde a crise e, em casos importantes, mesmo antes dela. A política abomina o vácuo. Ideias tão perigosas e divisivas quanto as do presidente americano Donald Trump ou as do primeiro-ministro assistente italiano Matteo Salvini certamente o ocuparão. Se o seu adversário propõe alguma coisa, não há como derrotá-lo propondo nada.

A fidelidade persistente de tantos à sabedoria convencional anterior à crise é espantosa. O fracasso do keynesianismo na década de 1970 foi significativo, mas certamente não foi maior do que a combinação de crescimento econômico lento e instabilidade macroeconômica produzida pela ortodoxia pré-crise. O que torna isso tudo ainda mais chocante é que há pouca confiança de que temos a capacidade (ou disposição) de lidar efetivamente com outra grande recessão, quanto menos com outra grande crise.

O que explica essa complacência? Uma razão pode ser a ausência de boas ideias. O economista Nicholas Gruen argumenta exatamente isso, em um artigo provocador. Mas existem ideias perfeitamente boas em circulação.

Há quem proponha mudar o sistema de financiamento de imóveis residenciais, de dívida para capitalização. Outros apelam que os juros de dívidas deixem de ser considerados dedutíveis dos impostos. Há também quem aponte para o impacto perverso dos incentivos para os executivos. Alguns argumentam convincentemente em favor de requisitos de capitalização mais rigorosos para os bancos. Outros questionam por que apenas bancos têm contas nos bancos centrais. Por que todos os cidadãos não podem tê-las? Há quem não entenda por que não usamos os bancos centrais para escapar à dependência quanto ao crescimento alimentado por dívidas.

Para além das finanças, parece cada vez mais claro que a proteção à propriedade intelectual passou dos limites. Além disso, por que não transferir a base da tributação à posse de terras? Por que estamos permitindo que a tributação do capital desapareça? E por que não estamos tentando revitalizar o combate aos trustes?

Pode ser que não exista uma ideologia abrangente disponível hoje. E isso é provavelmente bom. Mas existem boas ideias. Uma causa mais provável de inércia é o poder dos interesses escusos. A economia rentista que temos atualmente, disfarçada em livre mercado, é, afinal, altamente compensadora para as pessoas politicamente influentes.

Mas a complacência centrista alimenta a ira dos extremistas. Se aqueles que acreditam na economia de mercado e democracia liberal não propuserem políticas superiores, os demagogos os varrerão.

Uma versão melhor do que tínhamos no mundo anterior a 2008 não basta. As pessoas não querem um passado melhor; querem um futuro melhor.
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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