Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Descrição de chapéu Financial Times

Salvando a democracia liberal dos extremos

Liberalismo econômico mal administrado ajudou a desestabilizar a política

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"Nada em excesso". Esse lema, também conhecido como a "norma dourada", decorava o frontispício do templo de Delfos. Agir de maneira contida é especialmente importante para preservar a democracia liberal, uma síntese frágil entre liberdade pessoal e ação cívica. Agora, é preciso reconquistar o equilíbrio entre esses dois elementos.

Larry Diamond, da Universidade Stanford, argumenta que a democracia liberal tem quatro elementos necessários e suficientes: eleições livres e justas; participação ativa do povo (exercício da cidadania); proteção dos direitos civis e humanos de todos os cidadãos; e um Estado de Direito que se aplique a todos os cidadãos igualmente. O traço saliente do sistema está nas restrições que ele impõe ao governo e assim às maiorias: qualquer vitória é temporária.

É fácil ver por que esse sistema é tão frágil. E hoje a verdade dessa afirmação infelizmente deixou de ser só teórica. A Freedom House, uma respeitada organização sem fins lucrativos americana, bancada por verbas federais americanas, afirma que a democracia está em crise. Os valores que ela incorpora –especialmente o direito de escolher líderes em eleições livres e diretas, a liberdade de imprensa e o Estado de Direito –estão sob ataque, e em recuo em todo o mundo.

Essa "recessão democrática", como a define Diamond, não se restringe a países de mercado emergente ou ex-comunistas como a Hungria e a Polônia. O compromisso para com as normas da democracia liberal, entre os quais o direito ao voto e a igualdade de direitos para todos os cidadãos, estão em recuo mesmo em democracias estabelecidas, como os Estados Unidos. Por que isso aconteceu?

Apoiadores de partido conservador na Polônia
Apoiadores de partido conservador na Polônia - Czarek Sokolowski/AP

Em um livro recente, "The People vs. Democracy" [povo versus democracia], Yascha Mounk, da Universidade Harvard, argumenta que tanto o "liberalismo não democrático" quanto a "democracia não liberal" ameaçam a democracia liberal. No primeiro caso, a democracia é fraca demais: os elos sociais e a segurança econômica são sacrificados no altar da liberdade individual. No segundo, o liberalismo é fraco demais: o poder é capturado por demagogos que governam em nome de uma maioria raivosa ou no mínimo de uma minoria numerosa que se vê como o "verdadeiro povo". O liberalismo não democrático termina em governo pela elite. A democracia não liberal termina em governo autocrático.

O argumento de Mounk, além disso, é o de que o liberalismo não democrático, especialmente o liberalismo econômico, explica a ascensão da democracia não liberal: "vastas porções das políticas públicas foram excluídas da contestação democrática". Ele aponta para o papel dos bancos centrais independentes e para a maneira pela qual o comércio internacional é regido por acordos entre países, criados por meio de negociações secretas, realizadas em instituições remotas. Nos Estados Unidos, ele também aponta, tribunais não eleitos decidem muitas questões sociais controversas. Em áreas como a tributação, os representantes eleitos retêm autonomia formal. Mas a mobilidade mundial dos capitais restringe a liberdade dos políticos, reduzindo as diferenças efetivas entre os partidos estabelecidos de centro-direita e de centro-esquerda.

Até que ponto o liberalismo não democrático explica a democracia não liberal? A resposta é: até certo ponto.

Certamente, é verdade que a economia liberal não produziu os resultados esperados, e a crise financeira foi um choque especialmente severo. Um aspecto desse liberalismo –a migração–, de acordo com o escritor britânico David Goodhart em seu livro "The Road to Somewhere" [a estrada para algum lugar], persuadiu muitas "pessoas de algum lugar" –aquelas que estão ancoradas a um lugar determinado– de que estão perdendo seus países para forasteiros incômodos. Além disso, as instituições que representavam a maioria das pessoas comuns –sindicatos e partidos de esquerda– deixaram de existir ou deixaram de fazer seu trabalho. Por fim, o controle da política passou a ser exercido pelas "pessoas de qualquer lugar" –pessoas de escolaridade elevada e grande mobilidade.

Thomas Piketty sugere que a política ocidental agora está sob o domínio de uma "esquerda elitista" e de uma "direita mercantil". Esses grupos podem diferir muito um dos outro, mas ambos têm apego ao liberalismo –social no caso da elite esquerdista, e econômico no caso dos mercadores. E o público percebe.

Um ponto importante é que o liberalismo não democrático avançou demais, no entendimento de grande parte dos eleitores –e deixou de ser apenas liberalismo econômico. O problema não se restringe ao neoliberalismo. Além disso, a questão tem pouco a ver com a existência de instituições internacionais excessivamente poderosas –a possível exceção sendo a União Europeia. De fato, a prosperidade que os países de alta renda desejam está estreitamente vinculada ao comércio internacional. E ele necessariamente envolve mais de uma jurisdição. Um futuro que não inclua cooperação internacional na regulamentação e tributação de transações transnacionais não funcionará. Isso também precisa ser reconhecido.

A visão de que a dimensão econômica do liberalismo não democrático conduziu o povo à democracia não liberal é um exagero. O que é verdade é que o liberalismo econômico mal administrado ajudou a desestabilizar a política. Isso ajuda a explicar por que o reacionarismo nacionalista da Hungria e Polônia, enraizado na história desses países, não representa um desfecho inevitável em democracias estabelecidas. Será difícil para Donald Trump se tornar a versão americana do húngaro Viktor Orban.

Mas não podemos ignorar as pressões. É impossível para as democracias ignorar a ira e ansiedade pública generalizadas. As elites precisam promover um pouco menos de liberalismo, mostrar um pouco mais de respeito aos elos que unem os cidadãos uns aos outros, e pagar mais impostos. A alternativa de permitir que grande parte de uma população se sinta espoliada é perigosa demais. Mas será que é possível conduzir esse reordenamento? Essa é a grande questão.
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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