Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times

A barganha faustiana do nacionalismo

Estamos testemunhando o avanço de uma das formas mas malignas dessa poderosa força social

A história da ascensão da humanidade, de primatas da savana a mestres do planeta, está repleta de barganhas faustianas. 

A revolução da agricultura trouxe forte crescimento populacional, mas rebaixou o padrão de vida de muitos. O que vale para os sistemas produtivos também vale para as ideologias. E entre elas, especialmente para o nacionalismo —um propulsor tanto de desenvolvimento quanto de destruição.

Precisamos reconhecer e administrar os dois aspectos de sua personalidade —o benéfico e o diabólico.

O nacionalismo é, acima de tudo, uma força social extraordinariamente poderosa. Como foi possível recordar com as comemorações do armistício de 1918, dezenas de milhões de pessoas lutaram e morreram em exércitos nacionais, muitas vezes voluntariamente, desde o começo do século passado.

Elas morreram em massa por o que Benedict Anderson define como uma "comunidade imaginada": imaginada porque a vasta maioria de seus membros é desconhecida daqueles cuja identidade nacional eles compartilham, e comunidade por conta do reconhecimento de um elo primário de lealdade e apoio.

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Steve Bannon, criador da doutrina "America First" de Donald Trump, criou a organização "The Movement" que visa promover o nacionalismo pela Europa - Reuters

Elos como esses não podem ser introduzidos com facilidade na estrutura mental usada pelos economistas, que gira em torno de indivíduos racionais que buscam maximizar a utilidade. Os elos nacionais se apegam a algo de muito mais profundo: o nacionalismo é uma religião laica que santifica a ideia da nação.

Os seres humanos são intensamente sociais. É inteiramente natural para eles a identificação com algo maior que seus eus individuais. Inicialmente, no entanto, as comunidades que resultam disso costumam ser pequenas e familiares. A maioria das nossas entidades políticas subsequentes não esperava que o indivíduo sentisse identidade estreita com o Estado; em geral, exigiam só sua obediência.

O Estado-nação mobilizado e a intensa identidade que ele promove são produto dos últimos 200 anos, em geral, ainda que no Ocidente isso ecoe os valores de antigas cidades-Estado. Nosso ponto de partida moderno talvez seja a "levée en masse" (serviço militar obrigatório) introduzida depois da revolução francesa.

Ernest Gellner (1925-1995), filósofo britânico nascido na República Tcheca, fez contribuições notáveis para nossa compreensão dos benefícios econômicos do nacionalismo. Sua essência, ele argumentou, era a imposição de uma cultura de alfabetização universal sobre uma linguagem comum, em larga medida por um sistema nacional de educação.

Isso por sua vez requeria a criação de instituições nacionais e sustentava a emergência de uma economia nacional. Essa nova ideologia não só acompanhava, mas ativamente promovia um modo de vida mais flexível, enquanto a velha economia agrária, com seus pequenos agricultores, servos e senhores feudais, desaparecia na História. O nacionalismo serviu como uma das parteiras da modernidade industrializada.

Um Estado-Nação moderno tem consequências. Entre as benignas está o surgimento de uma população com um idioma compartilhado, e por isso capaz de cooperar e se movimentar com mais facilidade entre diferentes atividades econômicas.

Além disso, a nova ênfase em uma cultura e identidade nacional compartilhada conduziu quase naturalmente a demandas por democracia; se todos forem membros plenos da comunidade nacional, certamente todos merecem ter voz quanto ao seu destino. E, como consequência da combinação entre nacionalismo e democracia, surgiu o Estado de bem-estar social.

Este último protege as pessoas contra os riscos criados por uma economia de mercado dinâmica, na qual o ganha-pão do trabalhador pode desaparecer de um dia para o outro. Mas ao mesmo tempo reforça os elos da identidade nacional.

Entre as consequências menos benignas está a criação de uma classe que manipula o cenário econômico ("rent-seeking", em inglês): é sempre atraente erguer a bandeira nacional para ocultar a defesa de interesses particulares. 

Mas há algo mais profundo do que a simples cobiça em ação. Nos países de alta renda, o passaporte é o ativo mais valioso que muitos cidadãos possuem. Inevitavelmente, muita gente não gosta da ideia de compartilhar desse ativo gratuitamente. Que isso seja visto em termos de "identidade" é natural, precisamente porque um passaporte é uma expressão de identidade. O controle da imigração se torna assim um corolário inevitável do Estado democrático de bem-estar social.

Entre os resultados definitivamente malignos do nacionalismo está o uso da xenofobia como caminho para o poder. Quanto mais divergem os resultados econômicos dos cidadãos, em um Estado-nação, mais fácil se torna para políticos cínicos persuadir os cidadãos ansiosos de que seus interesses estão sendo sacrificados em benefício de uma elite "globalista" —ou seja, traiçoeira—, e de seus associados e servos estrangeiros. A visão de que aqueles que pensam globalmente são traidores não surpreende. É o resultado natural do sentimento nacionalista.

Desde a metade do século 20, o nacionalismo se globalizou. Na China, por exemplo, vimos a criação, pela primeira vez na história do país, de um Estado-nação chinês. Não surpreende, portanto, que o governo não seja capaz de lidar bem com suas comunidades minoritárias. Em sociedades altamente complexas, como a da Índia, a criação de uma identidade nacional unificadora é ainda mais difícil.

Hoje estamos testemunhando o ressurgimento do nacionalismo maligno em todo o Ocidente, mais significativamente nos Estados Unidos. Temos até o espetáculo de pessoas promovendo uma Internacional Nacionalista.

Enquanto isso, o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, recomenda, ridiculamente, tanto cooperação quanto o desmantelamento das instituições que fazem com que ela funcione.

O nacionalismo é sem dúvida a força política mais poderosa de nossa era. Em sua forma benigna —que podemos definir como "patriotismo", se quisermos, como George Orwell um dia fez—, ele serve de pedra fundamental às entidades políticas mais bem sucedidas do planeta.

Em sua forma maligna, porém, é inimigo da paz e da cooperação das quais nosso futuro depende. Se não formos capazes de conter seus aspectos malignos, o nacionalismo certamente nos destruirá.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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