Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Descrição de chapéu Financial Times tecnologia

Para os bancos centrais, chegou a hora de emitir moedas digitais próprias

O dinheiro precisa se adaptar à era da nova tecnologia, mas precisa funcionar para a sociedade como um todo

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Como os bancos centrais deveriam responder à tecnologia digital? Essa questão se tornou urgente. A resposta, em parte, é que eles e os governos precisam tomar o controle da nova fronteira selvagem das moedas privadas. Mas também precisam introduzir moedas digitais próprias.

O Estado não deve abandonar seu papel como protetor da segurança e da usabilidade do dinheiro. A ideia de que o faça não passa de uma fantasia libertária. Além disso, é urgente agir já. De acordo com um estudo conduzido pelos economistas Gary Gorton, da Universidade Yale, e Jeffery Zhang, do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, inovadores já criaram mais de oito mil criptomoedas.

Gorton e Zhang dividem essas criações em duas categorias principais: “criptomoedas fiduciárias”, sem lastro, como o bitcoin, e “stablecoins”, lastreadas por dinheiro oficial em base de um para um. As duas são problemáticas, de maneiras diferentes.

Fed (Federal Reserve), o Banco Central dos Estados Unidos, em Washington - Liu Jie - 15.jul.2021/Xinhua

Em artigo para o Financial Times, Roger Svensson argumentou que as criptomoedas fiduciárias não atendem a nenhum dos critérios que definem o dinheiro usável. O Banco de Compensações Internacionais (BIS) argumenta em seu mais recente relatório anual que “criptomoedas como essas são ativos especulativos e não dinheiro, e em muitos casos são usadas para facilitar a lavagem de dinheiro, ataques de ‘ransomware’ e outros crimes financeiros. O bitcoin, especialmente, tem poucos atributos redentores em termos de interesse público se considerarmos igualmente o desperdício de energia envolvido em sua criação”. Em minha opinião, “moedas” como essa deveriam ser ilegais.

As “stablecoins” são diferentes. Como argumentam Gorton e Zhang, o dinheiro precisa ser usável para pagamentos “sem questionamento”, mesmo em uma crise. Historicamente, houve corridas aos bancos exatamente por esse motivo; é por isso que eles são regulamentados e garantidos pelo Estado. A mesma preocupação se manifesta no caso das “stablecoins”. Em uma crise, pode haver “corridas” a elas como as que aconteceram aos fundos de mercado monetário em 2008. Dessa forma, as “stablecoins” precisam ou ser lastreadas em base de um para um por moedas emitidas por bancos centrais ou seus emissores terão de ser regulamentados como se fossem bancos.

Mais importante que as novas “moedas” é o ingresso das grandes empresas de tecnologia nos mercados de pagamentos. Isso oferece benefícios, mas também perigos. Os sistemas atuais de pagamentos são dispendiosos, e o pagamento de pequenos valores em dinheiro continua a ser mais barato, ainda hoje, do que o uso de cartões de crédito ou débito, e os pagamentos internacionais são notavelmente dispendiosos. Além disso, não existem sistemas digitais de pagamentos disponíveis para todos, mesmo nos países de alta renda. Em princípio, os novos participantes podem trazer grandes melhoras. Mas esse desdobramento também ameaça criar fragmentação no sistema de pagamentos, erosão da privacidade e até mesmo exploração dos consumidores.

É tarefa dos bancos centrais (e outras autoridades regulatórias) garantir que a revolução dos pagamentos digitais funcione para a sociedade como um todo. Existe agora a possibilidade —em minha opinião, a necessidade— de expandir o dinheiro físico com o acréscimo de moedas digitais criadas por bancos centrais (CDBC, na sigla em inglês).

Aqui surge uma grande questão: será que CDBCs deveriam ser usadas apenas em transações de atacado ou também por clientes de varejo? A resposta tem que ser a segunda. Sempre foi problemático que o benefício de manter dinheiro depositado em segurança junto ao governo se estenda aos bancos privados mas não ao público (exceto se considerarmos o uso de dinheiro em espécie). Agora, isso pode e deveria mudar, para benefício do público.

Mas existem ainda outras escolhas a fazer. Será que os clientes de varejo devem deter contas de CDBC no banco central, contornando completamente os bancos comerciais? Ou deve haver uma forma híbrida sob a qual os saldos em CDBC dos correntistas de varejo são detidos no banco central mas administrados por instituições privadas? Ou as contas em CDBC deveriam ser detidas por instituições privadas, com os bancos centrais cuidando apenas das compensações de transações de atacado, por enquanto?

Uma escolha relacionada envolve determinar se a CDBC deve ser mantido em forma de conta ou em uma carteira digital. A primeira forma, favorecida pelo BIS, significaria que a CDBC não seria substituta direta do dinheiro em espécie. Questões adicionais envolvem os sistemas de identificação. Quanto a isso, o BIS favorece um sistema construído com base em documentos de identidade digitais, e não físicos. Outras questões importantes envolvem a proteção de privacidade, o papel das redes privadas de pagamentos e, especialmente, a facilitação de pagamentos internacionais.

O objetivo último deveria ser um sistema de pagamento mais rápido, seguro e barato, disponível para todos. É crucial que o monopólio natural sobre o dinheiro e o bem público que um sistema de pagamento representa não se convertam em monopólios privados dominados por gigantes digitais. O entrelaçamento entre os propósitos públicos e os interesses privados dos bancos foi ruim o bastante. Caso o mesmo venha a acontecer em escala maior, envolvendo, por exemplo, o Facebook, a situação seria ainda pior.

Uma questão imensamente importante é o que o surgimento das CDBCs poderia significar para os bancos privados. Evidentemente, em uma crise, o dinheiro correria de outros ativos líquidos, como os depósitos em bancos comerciais, para as CDBCs. Mas também há como argumentar que a possibilidade de manter contas completamente seguras em CDBCs poderia ser positiva. O risco moral criado pelas garantias públicas a bancos privados desapareceria, então, e o sistema financeiro poderia ser reconfigurado sem ele.

Revoluções tecnológicas abrem novas possibilidades. Mas não determinam a arquitetura dos sistemas. É essencial que órgãos públicos garantam um sistema de pagamento seguro e sólido disponível para todos. É necessário que eles regulamentem, ou eliminem, os novos participantes perigosos. É vital, acima de tudo, que garantam que a promessa das novas tecnologias de sistemas de pagamentos mais rápidos e baratos embase um sistema monetário melhor, e ao mesmo tempo melhore a intermediação.

Escolhas têm de ser feitas. No processo, velhos protagonistas podem desaparecer e novos participantes surgirão. Mas o requisito fundamental é o mesmo de sempre, a saber, sistemas confiáveis nos quais o público possa depositar sua fé. Os bancos centrais desempenharão papel de liderança para garantir isso. Podem fazê-lo ao abraçar as possibilidades das novas tecnologias e ao mesmo tempo impedindo uma caótica disputa aberta a qualquer um. O BIS oferece um excelente apanhado sobre as questões. Agora é a hora de progredir.

Tradução de Paulo Migliacci

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