Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Martin Wolf
Descrição de chapéu Financial Times

A estranha morte da democracia americana

Uma crise constitucional se aproxima, à medida que Trump firma seu controle sobre o Partido Republicano

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“E o cesarismo americano se fez carne”, eu escrevi em março de 2016, antes que Donald Trump fosse escolhido como candidato republicano à presidência. Hoje, a transformação de uma república democrática em autocracia já avançou bastante. Em 2024, o processo pode se tornar irreversível. Se isso de fato acontecer, tudo mudará no planeta.

Ninguém delineou o perigo de maneira mais convincente do que Robert Kagan. O argumento dele pode ser reduzido a dois elementos. Primeiro, o Partido Republicano é definido não por sua ideologia, mas por sua lealdade a Trump. Segundo, o movimento amadorístico para “impedir o roubo” que surgiu na eleição passada agora se transformou em um projeto bem avançado. Parte desse projeto é remover as autoridades que bloquearam os esforços de Trump para reverter os resultados de 2020. Mas sua principal meta é transferir a responsabilidade por decidir os resultados de eleições aos legislativos estaduais controlados pelos republicanos.

Assim, se a saúde dele permitir, Trump será o próximo candidato republicano à presidência. Ele será apoiado por um partido que se tornou um instrumento sob seu controle. O mais importante, nas palavras de David Frum, no passado redator de discursos para o presidente George W. Bush, é que “aquilo que os Estados Unidos não tinham antes de 2020 era um grande movimento nacional disposto a justificar a violência das turbas como forma de tomar o poder político. Agora ele existe”. E isso acontece porque seus integrantes acreditam que os opositores não são americanos “verdadeiros”. Uma democracia liberal não sobrevive por muito tempo se um grande partido acredita que a derrota é ilegítima e portando deve ser tornada impossível.

O ex-presidente Donald Trump durante visita a seção inconclusa do muro na fronteira entre México e Estados Unidos - Callaghan O'Hare - 30.jun.2021/Reuters

Temos diante de nós um líder político que excluiu todos que se opunham a ele de posições de liderança no partido. Ele se vê como injustamente perseguido, define para os seus seguidores o que é a realidade, e insiste em que a única eleição legítima é uma eleição que ele vença. Uma crise constitucional se aproxima, alerta Kagan, e pode causar “caos. Imagine semanas de protestos de massa conflitantes em numerosos estados, enquanto os legisladores de um partido e de outro afirmam vitória e acusam os oponentes de esforços inconstitucionais para tomar o poder”.

Presuma que Trump volte a ser eleito, legitimamente ou por manipulação. É necessário presumir que a abordagem ingênua e incompetente quanto ao exercício do poder que ele exibiu em seu primeiro mandato não será repetida. Ele deve compreender que agora necessitará de seguidores leais e dedicados, e haverá muitos deles para administrar os departamentos responsáveis por justiça, segurança interna, receita, espionagem e defesa. Ele com certeza indicará pessoas leais diretamente a ele no comando das forças armadas. E, acima de tudo, ele conseguirá que seu leal Partido Republicano –e o partido certamente será leal– confirme quem quer que ele indique, caso o partido detenha a maioria necessária no Senado, o que parece altamente provável.

É igualmente certo que ele usará a pressão que será capaz de exercer sobre os ricos e os influentes para conquistar sua adesão. O capitalismo de compadres é uma das probabilidades. Pergunte aos húngaros que vivem em uma “democracia iliberal”, sob o controle de um homem tão admirado pelos sabichões da direita americana.

“Os americanos –e praticamente todos os políticos do país– se recusaram a encarar essa possibilidade com seriedade suficiente para tentar impedi-la”, aponta Kagan. “Como muitas vezes foi o caso em outros países nos quais líderes fascistas ascendem, seus potenciais oponentes se deixam paralisar pela confusão e pelo espanto diante do líder autoritário e carismático”.

Considere o que aconteceu durante a tentativa fracassada de golpe de Trump depois da eleição de 2020, e como os legisladores e os simpatizantes republicanos se uniram em torno dele, mais tarde, a fim de impedir que qualquer pessoa importante, acima de todos Trump, fosse responsabilizada pelo acontecido. Os únicos participantes significativos que terminaram punidos foram aqueles que resistiram ao golpe ou o condenaram. Os republicanos já cruzaram o Rubicão.

Por que isso aconteceu? A resposta é uma mistura de cobiça, ambição e ira, em um país que se diversificou muito e cuja economia não foi capaz de garantir prosperidade para uma grande proporção de sua população. Isso criou uma coalizão conhecida, construída com base em fazer dos outsiders o inimigo, glorificar a nação, proteger os ricos e cultuar um grande líder. Entre as pessoas que se identificam como republicanas, 57% consideram uma reação adversa à vacina como mais perigosa que a Covid-19. Isso é um indicador de tribalismo.

Será que ainda há como prevenir um colapso da democracia nos Estados Unidos? Possivelmente. Mas não será tão fácil quanto muita gente supõe com base no fracasso da tentativa de Trump de derrubar o resultado da eleição de 2020. Ele tem pleno controle sobre seu partido. Caso o ciclo normal da política entregue aos republicanos o controle da Câmara dos Deputados e do Senado, ele será tanto protegido quanto servido pelo Congresso a partir de 2022. Ele já detém, em princípio, uma grande maioria na Suprema Corte. Os republicamos agora controlam todos os ramos do governo em 23 estados, enquanto os democratas o fazem em apenas 15. Kagan deposita suas esperanças em que um número suficiente de senadores republicanos aprove leis que protejam o direito ao voto, e que o Judiciário se recuse a derrubar essas leis. Mas mesmo os políticos que desprezam Trump continuam leais ao partido. E, como mostra o debate sobre o limite da dívida federal, eles estão determinados a causar o fracasso de Biden.

Suponha que Trump volte ao poder em 2024, determinado a se vingar de seus inimigos, com o apoio do Congresso e da Suprema Corte. Sim, até mesmo isso pode ser um interlúdio. Trump está velho. Sua morte pode acabar com esse momento autoritário. Mas nem o sistema eleitoral e nem o Partido Republicano voltarão a ser o que um dia foram. Os republicanos se tornaram um partido radical, com uma agenda reacionária.

Os Estados Unidos são a única superpotência democrática. A transformação política pela qual o país vem passando tem profundas implicações para as democracias liberais em toda parte, bem como para a capacidade do mundo para cooperar em tarefas vitais, tais como a gestão dos riscos climáticos. Em 2016, era possível ignorar esses perigos. Hoje, é preciso ser cego para fazê-lo.

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