Martin Wolf

Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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Descrição de chapéu Financial Times tecnologia

Criptomoedas não são o novo sistema monetário de que precisamos

Elas proliferam descontroladamente e são objetos de especulação, mais que reservas de valor

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O dinheiro já evoluiu de moedas para notas, lançamentos em balanços e bits em computadores. As instituições que fornecem, operam, garantem e regulam o dinheiro evoluíram com ele. Então, como deve evoluir na era digital? A invenção das criptomoedas forçou todos os envolvidos e principalmente os bancos centrais –os agentes do Estado na gestão do bem público do dinheiro– a enfrentar essa questão. Se a criptografia não é a resposta, o que é?

O Banco de Compensações Internacionais (BIS na sigla em inglês) –o clube dos bancos centrais– tem se destacado no esforço para responder a essa pergunta. O último resultado está em seu Relatório Anual, que analisa o ecossistema emergente de criptomoedas, stablecoins e exchanges.

Esse admirável sistema novo é inerentemente falho, ele conclui. O crash das criptomoedas (e a bolha anterior) mostra que elas são objetos de especulação, mais que reservas de valor. Isso também as torna inúteis como unidades de conta. Como observa o BIS, "a prevalência de stablecoins, que tentam atrelar seu valor ao dólar americano ou a outras moedas convencionais, indica a necessidade geral no setor de criptomoedas de pegar carona na credibilidade fornecida pela unidade de conta emitida pelo banco central. Nesse sentido, as stablecoins são a manifestação da busca da criptomoeda por uma âncora nominal".

Representação de bitcoins - Dado Ruvic - 13.mar.2020/Reuters

No entanto, suas falhas são mais profundas que isso. Existem hoje cerca de 10 mil criptomoedas. Poderiam muito bem ser um bilhão. Mas essa tendência à fragmentação, "com muitas camadas de compensação incompatíveis lutando por um lugar no centro das atenções", argumenta o BIS, é inerente à lógica econômica do sistema, não apenas à sua capacidade tecnológica de se multiplicar sem limites.

Em um bom sistema monetário, quanto maior o número de usuários, menores serão os custos das transações e, portanto, maior será sua utilidade. Mas, à medida que mais pessoas usam uma criptomoeda, maior o congestionamento e mais caras as transações. Isso ocorre porque validadores com interesse próprio são responsáveis por registrar transações no blockchain. Este último deve ser motivado por recompensas monetárias altas o suficiente para sustentar o sistema de consenso descentralizado. A maneira de recompensar os validadores é limitar a capacidade do blockchain e manter as taxas altas: "Então, em vez da familiar narrativa monetária de 'quanto mais, melhor', a criptomoeda exibe a propriedade de 'quanto mais, pior'".

Não se pode ter as três coisas –segurança, descentralização e escalabilidade– ao mesmo tempo. Na prática, as criptomoedas sacrificam a última. O sistema cripto contorna essa desvantagem com "pontes" entre blockchains. Mas estas são vulneráveis a hackers. A conclusão do BIS é: "Fundamentalmente, criptomoedas e stablecoins levam a um sistema monetário fragmentado e frágil. É importante ressaltar que essas falhas derivam da economia subjacente dos incentivos, não de restrições tecnológicas. E, de forma não menos significativa, essas falhas persistiriam mesmo que a regulamentação e a supervisão abordassem os problemas de instabilidade financeira e o risco de perda implícito nas criptomoedas". Um sistema monetário fragmentado não é o que precisamos.

O que se deve fazer? Parte da resposta é insistir que a criptomoeda cumpra os padrões esperados de qualquer parte significativa do sistema financeiro. Entre outras coisas, as exchanges devem "conhecer seus clientes". Novamente, os ativos e passivos das chamadas "stablecoins" devem ser transparentes. As ligações entre bancos e criptoagentes devem ser especialmente transparentes.

No entanto, podemos fazer melhor que isso, argumenta o BIS. Do que precisamos em um bom sistema monetário são segurança, estabilidade, responsabilidade, eficiência, inclusão, privacidade, integridade, adaptabilidade e abertura. O sistema atual fica aquém, especialmente em pagamentos transfronteiriços. O BIS prevê em seu lugar um sistema em que os bancos centrais continuariam a fornecer "finalidade" de pagamentos em seus balanços. Mas novos ramos podem crescer no tronco do banco central. Acima de tudo, as moedas digitais do banco central (CBDCs na sigla em inglês) podem permitir uma reestruturação revolucionária dos sistemas monetários.

Assim, as CBDCs de atacado podem oferecer novas funções de pagamento e liquidação para uma gama muito maior de intermediários do que os bancos comerciais domésticos. Um elemento chave, sugere o BIS, seria a possibilidade de execução de "contratos inteligentes". Tais mudanças permitiriam a criação de novos sistemas de pagamento substancialmente descentralizados. Enquanto isso, as CBDCs de varejo poderiam complementar o desenvolvimento dos novos sistemas de pagamento rápido, que estão desafiando as rendas dos operadores atuais. O BIS aponta o sucesso do novo sistema brasileiro, o Pix. Mas os benefícios totais só seriam alcançados se as CBDCs revolucionassem os pagamentos transfronteiriços.

As CBDCs de varejo também permitiriam uma separação substancial entre pagamentos e assunção de riscos. Assim, o dinheiro que as empresas e as famílias detêm para fins de transação poderia se tornar o passivo dos bancos centrais. Os pagamentos seriam então geridos por empresas com foco nessa função, que lucrariam mais com transações do que com empréstimos. Não precisaríamos mais do seguro explícito e implícito do Estado para os bancos privados. Em vez de gerenciar pagamentos, estes se concentrariam em empréstimos. Seus passivos também poderiam se tornar menos líquidos e mais obviamente mais arriscados do que são hoje. Isso seria realmente revolucionário.

Mas também existem opções mais modestas. O ponto fundamental é que o universo criptográfico não oferece um sistema monetário alternativo desejável. Mas a tecnologia pode e deve fazê-lo. Os bancos centrais devem desempenhar um papel central na facilitação de um sistema que proteja e sirva as pessoas melhor que o atual.

É hora de podar o bosque criptográfico. Mas novos ramos também devem crescer na árvore do dinheiro e dos pagamentos.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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