Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

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Mathias Alencastro

De heroína, Uber passou a ser vilã machista, agressiva e trapaceira

Crédito: Danish Siddiqui - 19.jan.2016/Reuters O ex-CEO da Uber Travis Kalanick realiza palestra em Mumbai; ele deixou o cargo em 2017
O ex-CEO da Uber Travis Kalanick realiza palestra em Mumbai; ele deixou o cargo em 2017

Em menos de uma década, a Uber se tornou uma marca conhecida e temida globalmente. A sua estratégia comercial provocou uma abertura inesperada no mercado de transportes, tradicionalmente um dos mais regulamentados e, com o avanço do seu modelo de negócios para outros setores, analistas começaram a falar de "uberização da economia".

A expansão da chinesa Didi, contudo, a qual acabou de adquirir a brasileira 99 Taxis, sela o fim de uma era marcada pelas pretensões hegemônicas da Uber.

No seu advento, a Uber mesclava imperialismo e utopia. Arregimentando um exército espontâneo de motoristas por meio de um sistema de trabalho precário dissimulado como empreendedorismo, a empresa almejava conquistar cidade por cidade, país por país.

Apesar da fraca rentabilidade, ela conseguiu captar investidores com a promessa de constituição de um monopólio global no serviço de transportes privados e com a aposta em uma transição acelerada para veículos robotizados.

De São Paulo a Paris, passando por Johannesburgo e Nova Déli, a Uber recorreu a todo tipo de artifício —da criatividade fiscal à contratação de lobistas, passando pelo recrutamento intensivo de motoristas—, para vencer a resistência de grupos de interesse estabelecidos.

Esse estilo rolo compressor enfrentou a sua primeira grande derrota em dezembro de 2017, quando a Corte Europeia de Justiça, a mais alta instancia judiciária da União Europeia, definiu a Uber como uma empresa de serviços e não apenas como um mero aplicativo.

Essa decisão confere novos instrumentos legais para as autoridades dos países-membros da UE enquadrarem as suas atividades.

Somando-se à dificuldade de derrubar barreiras regulatórias, uma onda de acusações de assédio sexual causou um impacto catastrófico na sua imagem.

Acusada por ex-funcionários de ter permitido que uma cultura predatória se instalasse nas suas estruturas, a Uber mergulhou em uma crise de identidade que culminou no afastamento de seu presidente e fundador Travis Kalanick.

Num piscar de olhos, a firma passou de heroína do Vale do Silício a vilã da era Donald Trump: machista, agressiva e trapaceira.

O caminho ainda é longo. A história de Susan Fowler, a engenheira que divulgou os casos de assédio, será adaptada no cinema. Em plena era Harvey Weinstein, a Uber vai precisar trabalhar muito para reconstruir a sua imagem. Em decorrência disso, as desventuras da Uber abriram uma brecha para empresas que aproveitaram a mudança de paradigma para lançar aplicativos.

A 99 Taxis, por exemplo, teve a perspicácia de relançar os taxistas, que pareciam condenados ao mesmo destino dos mineiros grevistas na era Thatcher. Agora, ela e outros atores regionais estão sendo comprados pela Didi, gigante chinesa do setor, com mais de 450 milhões de usuários em 400 cidades, que se prepara para disputar o mercado global com a Uber.

Para os brasileiros, porém, resta entender por que uma estrela ascendente como a 99 Taxis precisou entregar o controle a chineses para crescer na América Latina.

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