Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

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Mathias Alencastro

Flamenguistas devem aceitar que Jorge Jesus nunca superará complexo do padeiro

Ao contrário dos jogadores, técnicos passam por apuros quando atuam no exterior

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Depois de uma performance apaixonada, Jorge Jesus celebrou o sonho flamenguista, o título de campeão da Libertadores, enrolado na bandeira portuguesa. Estranhamente, o novo herói nacional aproveitou a euforia coletiva para dobrar a aposta na guerra cultural.

Em entrevista a um canal de TV português depois da final em Lima, Jesus confidenciou que o Brasil, segundo ele às margens da globalização, desconfia do "nosso valor", numa provável referência ao suposto desprestigio dos portugueses em terras brasileiras.

Provável, porque, na semana passada, numa declaração histriônica que marcou a escalada da narrativa de um suposto embate entre brasileiros e portugueses, Jesus se referiu a uma passagem de "Os Lusíadas", de Luís de Camões, acerca da "inveja".

A sequência de polêmicas não é apenas absurda do ponto de vista literário. Quem teve a coragem de ler o entorpecente épico português sabe que Camões só mencionou o Brasil de passagem em seus 8.816 versos. Por isso, a declaração é também completamente gratuita, tendo em conta a realidade do mundo do futebol.

Ao contrário dos jogadores, muitas vezes adotados pelos seus novos países, os técnicos passam por apuros quando atuam no exterior.

Na França, muitos técnicos, do campeão italiano Carlo Ancelotti a Leonardo Jardim, compatriota de Jesus, sofreram horrores com os ultranacionalistas comentadores esportivos locais. Os clubes alemães, com exceção do Bayern de Munique, são conhecidos por apostarem nas pratas da casa. Doze dos 18 técnicos da primeira divisão foram promovidos internamente.

Citado por Jesus como exemplo do bom acolhimento de brasileiros em Portugal, Luiz Felipe Scolari foi tratado com imenso carinho. Mas outros estrangeiros saíram em condições caóticas. E as manifestações antibrasileiras, embora raras, existem: numa tirada odiosa, José Mourinho sugeriu que Pepe, zagueiro alagoano naturalizado, deveria ter um melhor comportamento na seleção "por não ser português".

Talvez Jorge Jesus tenha transformado uma dificuldade comum a todos os técnicos que se aventuram fora de casa em um conflito de civilizações porque ele é um personagem de outro tempo. Num passado nem assim tão distante, Portugal presenteou a sua geração com um verdadeiro caminho de pedras.

Em 1972, quando Jesus completou 18 anos, o Estado Novo estava sendo devorado por uma luta obsoleta pelas suas colônias, e os jovens tinham de escolher entre uma carreira de pau para toda obra no mato africano ou na periferia das cidades europeias.

Jesus tinha razões para ficar preocupado até o último minuto do jogo contra o River Plate: ele nunca foi um cara de sorte.

A globalização na marra deixou marcas profundas nos contemporâneos de Jesus. Defensivos por natureza, eles têm dificuldade em entender que, hoje, o português é visto como um cidadão europeu pleno, culto, dinâmico e empreendedor, com total legitimidade para assumir grandes cargos internacionais.

Para a lua de mel continuar, os torcedores devem aceitar que Jorge Jesus nunca vai superar o complexo do padeiro.

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