O caos da contagem de votos na primeira primária vem sendo tratado como a mais recente manifestação da crise que atravessa o campo progressista. Mas o episódio também pode ser interpretado como um momento tipicamente americano de destruição criativa.
O candidato designado da máquina partidária, Joseph Biden, que tinha pouco mais a oferecer do que uma vaga promessa de regresso a um passado idealizado, acabou carbonizado em Iowa.
Doravante, a disputa deve girar em torno de um ex-republicano, Michael Bloomberg, um independente, Bernie Sanders, e um centrista, Pete Buttigieg.
Os três estão desenvolvendo campanhas assumidamente pós-partidárias. O bilionário Bloomberg se deu ao luxo de ignorar as convenções e organizar uma operação desmaterializada e direcionada aos estados-chaves.
O principal mote de Sanders é a insurreição contra o aparelho democrata e Buttigieg, para sobreviver na competição a longo prazo, terá de evitar a todo o custo a etiqueta de "favorito do sistema". O jogo mal começou, e os burocratas já viraram o principal estorvo dos democratas.
A irrelevância crescente das instâncias partidárias no processo eleitoral americano confirma uma tendência global. Durante décadas, as formações tradicionais exerceram, com um sucesso incontestável, a missão de acomodar diferentes tendências ideológicas e centralizar a agenda programática.
Quase todas caíram na obsolescência da noite para o dia.
No recém-publicado "Os Engenheiros do Caos" (Vestígio), o italiano Giuliano Da Empoli, um assessor do ex-primeiro-ministro democrata Matteo Renzi, descreve o caos organizado do Movimento 5 Estrelas.
Por trás das suas figuras de proa carnavalescas, um exército de cientistas, ideólogos e peritos atiçava a raiva do eleitorado contra as instituições por meio de inovações tecnológicas. Sozinho, o movimento implodiu o sistema político.
O PT, que celebrou neste domingo (9) seus 40 anos, também foi atingido pela transformação da esfera pública.
Visceralmente avessos a toda tentativa de descentralização da ação política, seus dirigentes pareciam completamente ultrapassados pelo surgimento de novos atores digitais durante o processo de impeachment e o último ciclo eleitoral.
Agora, a pequena constelação de blogs ligados ao PT está perdendo espaço para uma nova geração que incorpora recursos populistas como a busca obsessiva por verdades subjetivas.
Uma nova geração de militantes digitais, que incorpora recursos populistas como a busca obsessiva por verdades subjetivas, parece mais interessada em debater temas inacreditáveis como os méritos do stalinismo e a natureza da democracia na Coreia do Norte do que em fazer oposição ao governo Bolsonaro.
Não precisava ser assim. Sob o comando de lideranças modernas, os partidos tradicionais podem evoluir rapidamente. Emmanuel Macron e Barack Obama demonstraram no seu tempo que as redes sociais podem ser usadas para promover projetos de poder progressistas e coerentes.
O vencedor das primárias democratas também precisará modernizar o partido para ter alguma chance de enfrentar a máquina republicana, controlada por Donald Trump. Talvez o desafio principal não seja mudar os partidos, mas mudar a cabeça de quem manda neles.
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