O acordo de assinaturas conjuntas entre a Folha e o diário português Público é talvez a primeira tentativa de universalização da imprensa nos países de língua portuguesa.
Os diários seguem os passos de The Guardian e El País, pioneiros no desenvolvimento de veículos de informação que uniram seus respectivos mundos anglófonos e hispanófonos.
No passado recente, a ausência de diálogo entre a imprensa lusófona complicou a compreensão das dinâmicas tricontinentais de alguns dos maiores casos judiciários e empresariais, como a caótica fusão da Oi com a Portugal Telecom, as negociatas reveladas pelo LuandaLeaks e a própria Lava Jato, uma investigação atlântica na sua essência.
Ainda incipiente, a parceria dos dois jornais pode revelar-se especialmente importante para o momento atual. Afinal, pela primeira vez em história multissecular, a lusofonia é execrada pelo governo brasileiro.
Bolsonaro é o primeiro chefe de Estado a negar um gesto diplomático em direção aos portugueses e luso-brasileiros.
Em estado avançado de decomposição psíquica, o Itamaraty está manifestamente indiferente aos assuntos urgentes da África de língua portuguesa, como o incandescente conflito no norte de Moçambique e a transição econômica de Angola para o pós-petróleo.
Para a desilusão dos saudosistas da monarquia retratados na edição da Ilustríssima deste domingo (12), a lusofonia parece dificilmente solúvel no caldeirão evangélico, ruralista e pró-americano do bolsonarismo.
Uma característica ainda pouco estudada que aparece como um fator distintivo da ideologia governista da tradição conservadora e autoritária brasileira.
Cabe lembrar que Bolsonaro está exacerbando as dificuldades do passado. As promessas dos tempos de Mário Soares e Fernando Henrique Cardoso nunca foram realizadas.
A Comunidade de Países da Língua Portuguesa ficou conhecida como vulgar máquina de lavar reputações depois da adesão do regime ditatorial da Guiné Equatorial em 2014.
Importantes iniciativas dos movimentos afro-brasileiros marcaram os anos Lula. Porém, capturado pelos empreiteiros-oligarcas, o espaço lusófono nunca conseguiu romper com a sua lógica extrativista.
Hoje, a lusofonia é um pântano disputado por pastores evangélicos e múmias luso-tropicalistas.
O premiê português António Costa tem os olhos virados para a Europa, e o presidente angolano João Lourenço quer distância de um Brasil demasiadamente associado ao seu predecessor e rival José Eduardo dos Santos. A reinvenção da lusofonia passa pela sua descolonização.
O belo texto de Thiago Amparo sobre a estátua de Borba Gato em São Paulo publicado nesta Folha deve ser lido lado a lado com o premonitório ensaio de especialistas a respeito de Padre Antônio Vieira e o seu monumento em Lisboa, publicado pelo Público no começo deste ano.
A abertura a jornalistas e cronistas de Angola ao Timor-Leste também merece ganhar em escala e relevância.
A lusofonia é global. Mas é no Atlântico Sul, palco de um dos maiores crimes contra a humanidade, que a sua história precisa ser reescrita. Torná-la verdadeiramente plural e universal é missão inerente à parceria entre dois dos seus grandes jornais.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.