Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

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Descrição de chapéu Diplomacia Brasileira

América do Sul, enquanto utopia de construção política, acabou

Integração da região, dada como destino natural, não terá passado de centenária ilusão

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A América do Sul, enquanto utopia de construção política, acabou com a pandemia. Se os blocos regionais foram fortalecidos na Ásia, na Europa e na África, eles foram praticamente desmantelados nas Américas.

Esvaziado de suas funções, o Mercosul virou um simples coordenador de espaços fronteiriços. Incrivelmente, os chefes de Estado de Brasil e Argentina nem sequer se comunicam por telefone. Até a Coreia do Norte e do Sul mostram mais vontade em cooperar.

Da esq. para a dir., o chanceler Ernesto Araújo, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, durante reunião virtual do Mercosul
Da esq. para a dir., o chanceler Ernesto Araújo, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, durante reunião virtual do Mercosul - Marcos Correa - 2.jul.20/Presidência da República via AFP

Impossível negar a responsabilidade do governo Jair Bolsonaro. Antes mesmo da posse, Paulo Guedes já sugeria que o Mercosul seria secundário. Em seu primeiro ano de mandato, o presidente sabotou as negociações do tratado entre o Mercosul e a União Europeia, definitivamente enterrado pela Alemanha na semana passada.

O abandono de qualquer pretensão de liderar a região é, no mínimo, surpreendente.

Afinal, Bolsonaro chegou ao poder por força de uma onda conservadora somente comparável à onda da esquerda do início deste século.

Praticamente todos os países vizinhos eram chefiados por aliados potenciais. Replicando as ideias de Steve Bannon, Eduardo Bolsonaro alimentava uma conversa fiada sobre um movimento populista na América no Sul.

Nada disso avançou, e o melhor que o governo Bolsonaro conseguiu foi inaugurar uma era de vandalismo diplomático marcada por ações pontuais, violentas e escabrosas, mal organizadas e contraproducentes.

A tentativa de emplacar na marra Juan Guaidó, numa produção digna de um filme da "Sessão da Tarde", acabou reforçando a ditadura de Caracas.

Hoje, Nicolás Maduro tortura ativistas, persegue indígenas e trata os doentes da pandemia como bioterroristas, sob os aplausos dos fanáticos que ainda se dignam a apoiá-lo no Brasil.

Talvez ainda mais revoltante, Ernesto Araújo e sua claque entregaram a cambaleante democracia boliviana a um bando de autocratas descarados, que têm como único objetivo adiar as eleições até eliminar todos os seus opositores.

Mas o descalabro do Itamaraty não explica tudo. A deliquescência do bloco regional tinha um quê de inevitável. Com a entrada em cena da China, Peru e Chile assumiram sua virada para o Pacífico, enquanto a Colômbia embarcou no projeto da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

A Venezuela, que nunca hesitou em torrar petro-dólares em iniciativas de integração regional, desapareceu do mapa para as próximas gerações.

A despeito dos gestos de boa vontade de seu presidente, a Argentina parece acomodada no isolacionismo, e regionalistas convictos como Paraguai e Uruguai serão incapazes de reverter a tendência sozinhos.

Longe vão os tempos em que mentes brilhantes como o centenário Celso Furtado desenhavam o futuro da região. Quando o Brasil voltar a ter uma agenda regional, seus formuladores serão obrigados a sair da zona de conforto.

Eles e elas terão de aceitar que a integração da América do Sul, entendida como um destino natural, não terá passado de uma centenária ilusão.

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