Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

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A Madalena de Putin

Sputnik V é viagem a passado idealizado

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No começo parecia algum tipo de piada. Mas, agora, depois das primeiras avaliações das agências internacionais, a vacina russa, pomposamente batizada de Sputnik V, está prestes a se tornar uma realidade.

Milhões de brasileiros devem se preparar para receber uma injeção desenvolvida por um governo dissimulado, falido e conhecido por envenenar os que o criticam. E, por mais incrível que pareça, pode dar tudo certo.

Da peste ao tifo, passando pela tuberculose, a Rússia tem uma longa história de combate a epidemias.

Produção da vacina russa Sputnik V no Instituto Gamaleya, nos arredores de Moscou
Produção da vacina russa Sputnik V no Instituto Gamaleya, nos arredores de Moscou - Andrei Rudakov - 21.ago.2020/Fundo de Investimento Direto da Rússia/via Reuters

Terrível durante o império czarista, a saúde pública passou por uma melhora notável depois da revolução de 1917. O projeto de expansão do atendimento básico e de campanhas de vacinações encontraram sucesso.

Em 1965, a União Soviética ostentava a média de 23 médicos por 10 mil habitantes, superior à do Brasil em 2019.

Um progresso vistoso, mas frágil. O tratamento das doenças não comunicáveis era desastroso, e a infraestrutura fora das zonas industriais, inexistente.

À imagem do resto do aparelho estatal, o setor da saúde entrou em colapso a partir dos anos 1980 e, depois do inferno dos anos 1990, acabou sob o controle de Vladimir Putin, seus comparsas do velho KGB de São Petersburgo e um contingente de oligarcas arrivistas.

Apesar de toda essa desgraça, é perfeitamente plausível que um grupo de especialistas financiados pelo Kremlin tenha conseguido revirar as ruínas soviéticas e resgatar a memória institucional para desenvolver uma vacina simples, barata e eficiente.

Esse elixir chegaria num momento decisivo para Putin, que acabou de prolongar a sua estada no topo do Estado por meio de um golpezinho bem ao seu estilo.

Angela Merkel, sob pressão de movimentos de direitos humanos, ameaça retirar o apoio da Alemanha à construção do oleoduto Nord Stream 2, eixo central da política energética da Rússia.

A insurreição popular na Belarus não tem solução fácil. Longe vão os tempos em que Putin podia botar ordem nos países vizinhos enviando um catatau de soldadinhos.

Até os governantes do Reino Unido, fiéis aliados dos oligarcas russos, estão abandonando o barco depois de verem as suas relações promíscuas expostas em jornais e livros investigativos.

Com o petróleo em mínimos históricos, sobram apenas a carcaça do aparato de segurança e uma vaga ambição geopolítica. Da manipulação de idosos do interior dos Estados Unidos nas redes sociais à articulação de milícias no deserto da Líbia, mercenários russos vagueiam ao redor do mundo para eliminar ameaças reais ou imaginárias.

Nesse marasmo, a Sputnik V é vista como uma madalena de Proust que oferece aos pacientes uma viagem a um passado idealizado.

Uma ilusão que permitirá a Putin poder disputar com Xi Jinping o lugar de organizador da saúde pública mundial, enquanto os Estados Unidos superam os seus problemas de terceiro mundo.

A vacina pode até ser um ator importante na luta contra o coronavírus. Mas isso, no fundo, pouco importa. O que conta para Putin é a breve sensação de poder que ela proporciona.

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