Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

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Na África, 'lockdown' rigoroso terá custo dramático

Medida para controlar contágio da Covid desestabilizou a vida de milhões em questão de semanas

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No Brasil, o negacionismo do governo federal contribuiu para o fracasso das tentativas de “lockdown”, o que levou a milhares de mortes desnecessárias.

Na África subsaariana, muitos governos seguiram à risca as recomendações internacionais e tentaram aplicar alguns dos "lockdowns" mais rigorosos do mundo. Os resultados 
também foram dramáticos, embora por motivos diferentes.

Sem o poder financeiro e tecnológico para expandir a rede de apoio social, autoridades deixaram as populações ao abandono por meses a fio. Para manter essa situação impossível, elas recorreram 
ao uso da força. Rapidamente, o controle sanitário degenerou em violência gratuita.

Cliente compra álcool em loja de bebidas de Joanesburgo, após governo sul-africano permitir venda de bebidas alcóolicas, que ficou proibida devido à pandemia de coronavírus
Cliente compra álcool em loja de bebidas de Joanesburgo, após governo sul-africano permitir venda de bebidas alcóolicas, que ficou proibida devido à pandemia de coronavírus - Michele Spatari - 18.ago.20/AFP

Numa região caracterizada pela informalidade, pobreza, urbanização precária e dependência de feiras e mercados públicos, o “lockdown” desestabilizou a vida de milhões numa questão de semanas. A ONU anunciou que as primeiras fomes provocadas pela 
pandemia são iminentes.

Em 2019, a África subsaariana esperava reduzir o número de pessoas em situação de pobreza extrema para 24% por volta de 2030. A 
meta virou uma miragem.

Ironicamente, os países industrializados que tanto exigiram o “lockdown” foram os primeiros a cortar os recursos que tornavam 
possível a sua implementação.

Travaram cadeias de produção e desencadearam aumento abrupto de preço de produtos básicos. Ordenaram gestores públicos e coordenadores de ONGs a se dedicarem exclusivamente ao coronavírus, deixando para trás o acompanhamento de muitas outras 
doenças descontroladas.

Essas decisões foram tomadas num contexto de urgência e desconhecimento da Covid-19. Mas a realidade é que a coordenação internacional foi 
praticamente suspensa quando a região mais precisava.

Tudo isso por causa de uma doença que não representa uma grande ameaça para a população da África subsaariana, cuja idade média, 19 anos, é quase a metade da europeia. A taxa de mortalidade devido à epidemia na Nigéria será provavelmente inferior à de um país como a Noruega.

Embora o “lockdown” tenha tido efeitos indiscutíveis no controle da doença na África do Sul, em muitos outros países o pico foi muito inferior por causa da dinâmica demográfica, entre outros fatores.

A tendência por parte da comunidade internacional para impor crenças econômicas, políticas e, neste caso, sanitárias, em total desconsideração com a realidade africana, tem uma profunda dimensão colonial.

A África sempre foi vista como laboratório de experimentação e redenção. No começo da pandemia, analistas anunciavam que a doença atingiria proporções bíblicas. O médico francês Didier Raoult, o charlatão da cloroquina, 
iniciou as suas experimentações no Senegal, onde nasceu.

Dado o comportamento inenarrável do governo Bolsonaro, o Brasil exclui-se de qualquer discussão séria de políticas públicas sobre organizar “lockdown” em populações vulneráveis. Mas, nos países africanos, a discussão terá de ser engajada para não repetir erros que levaram ao desastre.

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