Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

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Frantz Fanon e a Folha

Jornal soube se abrir às pessoas certas na hora de derrubar Borbas Gatos

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Mergulhado no combate contra o islamismo radical, Emmanuel Macron decidiu abrir uma nova frente contra "certas teorias de ciências sociais inteiramente importadas".

Segundo ele, as ideias progressistas que prosperam nas universidades norte-americanas sobre gênero, raça e pós-colonialismo estão contaminando os estudantes franceses e representam uma ameaça para a perda de unidade republicana, um dos grandes temas do seu mandato.

Na realidade, a França está lutando contra a sua própria história. Os autores que dominam as ementas de "cultural studies" e "black studies" nas principais universidades dos Estados Unidos são, na sua grande maioria, oriundos da França ou do espaço pós-colonial francófono.

Os trabalhos de Jacques Derrida (1930-2004), Michel Foucault (1926-1984) e Achille Mbembe foram sublimados pelo ambiente multidisciplinar da intelectualidade norte-americana e o olhar da militância negra nos Estados Unidos.

O pensamento de outras expoentes como Judith Butler e Angela Davis não seria o mesmo sem a filosofia francesa.

A paranoia de Emmanuel Macron reforça a sensação de decadência do seu projeto político. Eleito com a promessa de promover uma França global num mundo cada vez mais nacionalista, ele termina abraçado à bandeira provinciana do antiamericanismo.

Nenhum autor ilustra tão bem as contradições da postura política de Macron como Frantz Fanon (1925-1961).

O psiquiatra e escritor Frantz Fanon
O psiquiatra e escritor Frantz Fanon - Divulgação

O discípulo de Aimé Césaire (1913-2008) acabou preterido por autores francófonos considerados mais conciliadores, como o senegalês Léopold Sedar Senghor (1906-2001), no meio acadêmico e intelectual.

O passado revolucionário de Fanon incomodava os franceses, que procuravam enterrar a memória colonial e militar.

Além de ser um autor prolífico e virtuoso, o francês da Martinica, falecido em 1961 aos 36 anos de idade, também era um dos chefes de orquestra da luta anticolonial na Argélia, uma das capitais do terceiro mundo naquela altura.

A partir dos anos 2000, ele foi ressuscitado pelos acadêmicos norte-americanos e virou o Michel Foucault do século 21, com seus escritos e ideias permeando trabalhos de todas as disciplinas acadêmicas.

Quem lê a Folha testemunhou essa mudança.

Uma breve busca no arquivo do jornal indica que Frantz Fanon foi mais vezes mencionado nos últimos dois anos (pelo menos 26 em 2020 e 2019) do que nos vinte anteriores (cerca de 23 entre 2018 e 1998).

Em coluna de 2004, Elio Gaspari descrevia Fanon como "uma linda peça de antiquário de um radicalismo perdido".

Hoje ele é o autor mais vendido no Brasil na seção ciências sociais e psicologia de uma famosa livraria virtual. Macron ficaria horrorizado.

Impossível não traçar um paralelo entre as menções crescentes a Frantz Fanon e a entrada em cena de intelectuais como Silvio Almeida, Thiago Amparo e Djamila Ribeiro.

A Folha, que se posicionou contra as cotas raciais, soube abrir as suas páginas para as pessoas certas quando chegou a hora de derrubar os Borbas Gatos. A contribuição do jornal para a revolução do debate público sobre raça, memória e desigualdade será o maior legado destes anos centenários.

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