Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

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Descrição de chapéu Itamaraty

Spray contra Covid é novo episódio da diplomacia da tranqueira entre Brasil e Israel

Israelenses vão jogar com o desespero brasileiro para extrair benefícios diplomáticos em troca das sobras da sua triunfal campanha de vacinação

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A diplomacia da tranqueira entre Brasil e Israel conheceu mais um episódio bizarro. Depois de prometer uma máquina que “extrai água do ar” no começo do ano passado, Jair Bolsonaro encontrou na brinquedoteca um spray que poderia curar pacientes com Covid-19 em poucos dias.

Essa fantasia medicamentosa foi demais até para o Tribunal de Contas da União, que questionou a pertinência de uma viagem para conhecer um forte candidato a nova cloroquina. Para se proteger, o Planalto corrigiu o tiro, e a comitiva descobriu na sala de embarque que, afinal, a prioridade da missão era buscar parcerias de “ciência e tecnologia”.

O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, cumprimenta o chanceler israelense, Gabi Ashkenazi, com o cotovelo durante compromissos de agenda em Israel
O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, cumprimenta o chanceler israelense, Gabi Ashkenazi, com o cotovelo durante compromissos de agenda em Israel - Daniela Kresch/Folhapress

À imagem do que aconteceu com República Tcheca e Honduras, as autoridades israelenses vão jogar com o desespero do governo brasileiro para extrair benefícios diplomáticos em troca das sobras da sua triunfal campanha de vacinação. Ernesto Araújo não hesitará em chamar esse escambo de vitória.

Como é hábito no bolsonarismo, os embustes revelam um mal profundo. Muito se especulou sobre o caráter do personagem de Werner Herzog responsável por transformar o Itamaraty no navio da morte. Mas o “caso do spray” diz algo novo sobre a sua equipagem.

Do Chile à Nigéria, passando pela Noruega, os diplomatas estão sendo tratados como heróis da pandemia, ao mesmo título que os médicos e enfermeiros, por seu papel na disputa pelos parcos estoques de imunizante no mercado global. Embaixadores de países da União Europeia rebelaram-se contra a política de aquisição de vacinas centralizada por Bruxelas e passaram a negociar em nome das suas capitais com Rússia e China.

Enquanto isso, no Brasil, o alto escalão do Itamaraty passou a última semana organizando uma viagem que tinha como único propósito alimentar o delírio negacionista. Durante esse período, morreram 10 mil brasileiros. A sociedade quer saber como esses diplomatas conseguem dormir à noite.

A transformação do Itamaraty na secretaria de comunicação do bolsonarismo terá consequências nefastas para a instituição. Manifestações como a tentativa de aquisição de vacinas por governadores e prefeitos podem ser vistas como tentativas caóticas de sobrevivência, mas também são movimentos em direção a uma federalização da política externa. Essas instituições regionais vão acabar se emancipando dos canais da diplomacia tradicional.

Uma das vocações do bolsonarismo é a vandalização das instituições. Poucas estão sendo tão atingidas como o Ministério das Relações Exteriores.

Os diplomatas são a elite do serviço público, homens e mulheres preparados com muito rigor e experientes. Mesmo nos piores momentos da história brasileira, eles souberam manifestar a sua individualidade e independência.

Seus antecessores jamais assistiriam passivamente a um chanceler normalizar a morte de milhares de brasileiros. Os diplomatas precisam, urgentemente, resgatar seu amor-próprio e encontrar uma forma de expressar seu desconforto com a promiscuidade entre o Itamaraty e a ideologia governamental.

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