A França entra na semana do bicentenário da morte de Napoleão num voo sem horizonte. O recente manifesto assinado por generais da reserva alertando para a ameaça de uma “guerra civil iminente” é um abalo sem precedentes na história recente das relações civis-militares.
O governo, surpreendido com a violência do texto, demorou para reagir, e uma sondagem indicou que 58% da população apoiava a iniciativa dos militares. Impossível minimizar a importância do fato. A França passou por 12 atentados terroristas desde 2015 e tem mais de 30 mil soldados no exterior. Nesse contexto, o conceito de “militar de pijama” simplesmente não existe.
O “causo” militar também revela o estrago provocado pela dinamitagem das fundações do sistema político francês na espetacular eleição de 2017. Primeiro presidente eleito com menos de 40 anos e sem nunca ter exercido um mandato eletivo, Emmanuel Macron tentou consolidar a sua legitimidade demitindo o comandante das Forças Armadas, Pierre de Villiers, devido a um contencioso banal sobre o orçamento da Defesa.
Escritor talentoso, Villiers iniciou uma nova carreira de apóstolo dos valores tradicionais franceses. Seu livro, “O que É um Chefe” (em tradução livre), consta entre os mais vendidos da década, e seu nome circula como possível presidenciável. Impossível não ver uma relação entre o manifesto e o sacrifício de Villiers por Macron.
Villiers faz parte de todo um universo de personagens antipolíticos que avançam em cima das ruínas da política tradicional. Mais de 10% dos franceses se declaram dispostos a votar em Eric Zémmour, um comentarista de TV conhecido pelas suas posições extremistas anti-imigração. François Ruffin, que usa camisa de futebol na Assembleia, é o deputado mais popular da esquerda.
O discurso mais repercutido no Dia do Trabalhadores foi de Francis Lalane, um Ney Matogrosso muito piorado, que declarou que a França tinha “mergulhado numa ditadura”. Algo vai mal na terra das revoluções sociais e do sindicalismo.
Quem ganha com a cacofonia ambiente é Marine Le Pen. Pela primeira vez na série histórica, o seu partido tem ultrapassado confortavelmente os 30% de opiniões favoráveis, o mínimo estabelecido para pretender uma vitória numa presidencial de dois turnos.
Na próxima quinta (6), todos vão medir as palavras de Macron sobre Napoleão. O julgamento moral será denunciado como uma concessão às teses pós-coloniais da esquerda americanizada. Uma celebração demasiadamente conservadora será vista como mais um apelo desesperado ao eleitor de direita.
Mas a memória de Napoleão serve sobretudo para lembrar que esquerda e direita não são apenas vulgares instrumentos do teatro da política, mas códigos seculares que organizaram as sociedades modernas desde que girondinos e montanheses escolheram seus respectivos lugares na Assembleia no 11 de Setembro de 1789. Em 2017, Macron declarou esses códigos abolidos, e a França perdeu o seu norte político. Cabe a ele levar até o fim a sua própria revolução e, em 2022, salvá-la de uma contrarrevolução.
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