A guerra foi o choque que concretizou a transformação da União Europeia em unidade geopolítica. Ela recebeu o presidente Volodimir Zelenski no Parlamento, coordenou o armamento da sua resistência e ensaiou se desvincular do capitalismo russo.
Até o tabu da dependência dos hidrocarbonetos está ameaçado. Em nome do esforço militar, não estamos longe de ver ecologistas europeus votando a reabertura de minas de carvão. Os políticos que alimentavam a ambiguidade sobre o regime Putin foram extintos eleitoralmente. A candidatura do pró-europeu Emmanuel Macron a um segundo mandato presidencial foi um não acontecimento. É a reeleição pela guerra.
Nos Estados Unidos predomina a lógica isolacionista instituída por Donald Trump. No seu discurso sobre o Estado da União, Joseph Biden usou a Ucrânia como pretexto para retomar sua agenda de reformas econômicas. Informes sobre o investimento em infraestrutura e a regulação do preço da insulina ocuparam mais espaço do que as digressões sobre liberdade e democracia.
O Estado americano fornece recursos militares e pressiona os aliados russos, começando por Irã e Venezuela. Mas a alma da guerra continua na Europa.
Face à ampliação do bloco ocidental, Putin abriu o segundo front: a própria Rússia. Ele impôs penas de 15 anos de prisão a quem criticar o conflito e encerrou toda a imprensa independente. Circulam rumores sobre a introdução da lei marcial e do recrutamento militar obrigatório. Assolada pelas sanções, a população russa também tem de enfrentar o regresso do totalitarismo.
O Putin sombrio e realista romantizado por Oliver Stone, que chegou ao poder por meio de uma aliança entre o aparelho de segurança e o capitalismo extrativista, já pertence aos livros de história. Os seus discursos são todos enxaguados no fanatismo nacionalista e religioso.
Kiev será a primeira grande batalha da guerra da Ucrânia. Aos olhos dos europeus, a capital é a última linha de defesa da UE. Se ela cair, todo o continente ficará ameaçado pela ditadura militar-milenarista.
Na visão de Putin, Kiev "é a mãe de todas as cidades russas". A defesa do destino histórico do imperialismo russo justifica todos os meios: o massacre de civis, o terrorismo nuclear e a ameaça da bomba.
Representadas pelo seu porta-voz Zelenski, as fações mais radicais do bloco ocidental defendem o envolvimento imediato da Otan com a criação de uma zona de exclusão aérea, um suave eufemismo para guerra atômica. Mas a escalada infernal deve ser evitada, e a primeira batalha não será a última. O lado derrotado será instado a se sentar à mesa de negociação que está sendo montada pelos diplomatas israelenses.
Quanto à China, ela parece jogar em outro espaço-tempo. Seu apoio à Rússia não se estende a Vladimir Putin. Uma potência com ambições globais jamais selaria um pacto de morte com um regime em perdição. Pequim sabe que chegará o momento em que o Kremlin, com ou sem o autocrata, vai precisar organizar sua reinserção geopolítica.
O cenário de uma Rússia economicamente dependente da China é visto como uma ameaça existencial pelos EUA. As ruínas de Moscou serão o palco da competição entre as superpotências deste século.
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