Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

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Descrição de chapéu China Coronavírus Ásia

Lockdown de Xangai sugere mudanças na relação entre China e globalização

Há algo diferente na história da cidade que tem a ver com seu lugar no mundo

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Cachorros abatidos na frente dos donos, pais e avós ameaçando se jogar da janela para impedir que filhos diagnosticados com Covid sejam levados à força para centros de acolhimento, falta de alimentos e medicamentos, pessoas morrendo em casa porque não receberam o resultado do teste PCR a tempo de serem autorizadas a ir até ao hospital.

Entre ficção e realidade, as histórias que circulam no WeChat, carro-chefe das redes sociais chinesas, narram o lockdown mais severo e secreto da história da pandemia.

Submetida ao confinamento total há mais de duas semanas por tempo indeterminado, Xangai foi a principal vítima do colapso do modelo de controle sanitário chinês.

Funcionários estatais com roupas de proteção em área residencial sob lockdown em Xangai - Aly Song - 17.abr.22/Reuters

A campanha de vacinação não tem funcionado como esperado devido a problemas de baixa adesão, especialmente entre idosos. Enquanto isso, a disseminação da variante ômicron tornou inviável a política "Covid zero", baseada numa combinação de rastreamento draconiano e isolamento geográfico, que permitiu a Pequim ostentar o número mais baixo de contágios nos primeiros anos de pandemia.

Depois de alguns dias de hesitação por parte das autoridades locais, o que gerou um movimento de pânico e diferentes eventos de supercontágio, a exuberante Xangai foi convertida em um experimento avançado do autoritarismo tecnológico que ameaça as sociedades modernas.

Drones hitchcockianos vigiam a angústia das pessoas em suas residências, numa versão robótica de "Janela Indiscreta". A toda-poderosa governança sanitária arranca moradores de casa e controla circulação e alimentação, enquanto satura as redes com desinformação. Oficialmente, apenas sete pessoas morreram em Xangai desde o começo da pandemia —na noite deste domingo (17) foram anunciadas mais três, as primeiras desde o lockdown.

No mundo inteiro, as tentativas de controle sanitário quase sempre redundaram em distopias. O recente atentado no metrô de Nova York é apenas a última manifestação de uma cidade desorganizada pelo abandono medieval dos mais frágeis. A devastação do centro de São Paulo é sempre um lembrete a mostrar que só os ricos podem se dar ao luxo de colocar a memória da pandemia debaixo do tapete.

Nas Américas, os desdobramentos na China devem ser analisados com a humildade daqueles que fracassaram miseravelmente. Mas há algo diferente na história de Xangai, que tem a ver com seu próprio lugar no mundo.

A cidade sempre esteve na fronteira entre o Oriente e o Ocidente. Foi o polo dos novos movimentos culturais na era em que grandes potências instalaram enclaves e o principal campo de batalha entre comunistas e nacionalistas na fase tardia da guerra civil.

A cultura empreendedora local foi colocada a serviço da abertura econômica nos anos 1980 e 1990. Foi ali que se instalaram os quadros chineses que se formaram no exterior e estiveram na vanguarda da modernização da indústria. Hoje Xangai divide o protagonismo com as novas megacidades, mas continua moldando a percepção internacional da China pela sua liberdade criativa.

A submissão, de mau agouro, dessa civilização a uma máquina de controle revela algo mais do que as derivas da lógica sanitária do regime. Sugere mudanças profundas na relação entre a China e a globalização.

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