Comenta-se com ironia que a invasão da Ucrânia pela Rússia, motivada para avantajar Moscou e inaugurar uma nova era geopolítica, acabou reforçando o Ocidente. Entretanto, outro desdobramento surpreendente tem merecido menos atenção dos observadores: o ressurgimento do Brics.
Depois de festejarem os 20 anos do bloco melancolicamente no ano passado, os países-membros, Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, pareciam prontos para seguir caminhos diferentes.
As ambições da China, cujo PIB cresceu 18 vezes desde 2001, criaram fricções dentro do grupo. Sob Narendra Modi, a Índia iniciou uma virada atlantista, pró-ocidental, com a entrada no Quad, o grupo de diálogo para a contenção de Pequim liderado por Washington. Inspirado pela loucura bolsonarista, o Brasil tentou se alinhar aos Estados Unidos de Trump e adotou uma violenta retórica anti-China.
Atormentada por uma crise doméstica, a África do Sul perdeu relevância dentro e fora da África. O mergulho de cabeça da Rússia na guerra poderia ter implodido o bloco. Mas o contrário aconteceu.
As explicações para a reação quase uníssona do Brics diante do conflito entre Ocidente e Rússia vão além da solidariedade anti-imperialista e das articulações frenéticas do Kremlin para impedir seu isolamento.
Os outros membros, começando por China e Índia, viram no Brics o fórum mais apropriado para buscar o equilíbrio entre o apoio inevitável a Moscou e a preservação de sua integração com a economia global.
No novo mundo, caracterizado pelo acirramento entre superpotências, o bloco surgiu como um porto seguro do velho multilateralismo. Não por acaso, sua próxima cúpula, agendada para junho, será a mais escrutinada da última década. Para o Brasil, que se encontra à deriva desde o fracasso da diplomacia bolsonarista, o regresso do Brics pode acelerar sua reinserção internacional.
Para tanto, a prioridade deve ser consolidar outras agendas além da delicada questão militar. Num momento em que a Índia sofre com uma onda de calor tirada de um livro de ficção científica, o aprofundamento da cooperação na luta contra a crise climática, além da organização em torno de polos de tecnologia e indústria, parece uma evidência.
Uma abordagem mais ambiciosa e inovadora seria vincular o desenvolvimento do Brics a outros mecanismos de integração prioritários ao Brasil. Na América do Sul, o projeto de moeda compartilhada apresentado por Fernando Haddad e Gabriel Galípolo nesta Folha dialoga com a agenda de reorganização do sistema financeiro, prioridade absoluta da China na era das supersanções, e, ao mesmo tempo, atende ao desafio de reforçar o poder de negociação brasileiro perante os parceiros comerciais euroasiáticos.
Também o futuro das relações entre Brasil e os países africanos, potências do agronegócio, será construído invariavelmente em torno da relação com a China e a Índia, que reúnem mais de 40% da humanidade. A próxima década deve confirmar que Pequim e Nova Déli serão os únicos países do Brics a realizarem a profecia de Jim O’Neill, criador do acrônimo, e a alcançarem o status de potência global.
Cabe ao Brasil transformar a frustração em uma nova agenda estratégica.
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