Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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Mauricio Stycer

Na Netflix, Letterman questiona formato superficial de talk shows na TV

A estreia agora em janeiro de "O Próximo Convidado Dispensa Apresentação" mexeu com todo mundo que é fã de talk show. Trata-se de um programa de entrevistas comandado por David Letterman e exibido pela Netflix.

A gigante do streaming encomendou, inicialmente, seis episódios a Letterman, que serão oferecidos em doses mensais aos assinantes do serviço até junho. O convidado da estreia foi o ex-presidente americano Barack Obama, e os demais entrevistados serão George Clooney, Jay Z, Tina Fey, Howard Stern e Malala Yousafzai.

Letterman entrevistou Obama no palco de um pequeno teatro, em Nova York, diante de uma plateia animada, tão fã do ex-presidente quanto ele. Não fez nenhuma pergunta difícil ou constrangedora (Trump, por exemplo, não foi mencionado).

Mais do que uma entrevista, o primeiro episódio mostra o encontro entre um fã e um showman, ambos mestres na arte da boa conversa.

Por cerca de 60 minutos, Letterman e Obama falam animadamente sobre aposentadoria, família, música (Prince) e, num raro momento sério, sobre o impacto da luta pelos direitos civis nos anos 1960 na formação dos dois.

Letterman, como se sabe, havia saído de cena em maio de 2015, depois de 33 anos contando piadas e provocando os seus entrevistados com ironia cortante no comando de duas atrações que fizeram história na TV americana, nas tradicionais redes NBC e CBS. Na Netflix, ele diz que foi demitido desta última, mas é só uma piada.

Em abril de 2017, como que coroando a sua trajetória, o apresentador foi objeto de uma excelente biografia, "Letterman, the Last Giant of Late Night" (Letterman, o último gigante da noite) (Harper Collins, 350 págs, US$ 16,99 na Amazon), escrita por Jason Zinoman, colunista do jornal "The New York Times".

O seu retorno, em 2018, manda sinais ambíguos à indústria do entretenimento. Aos 70 anos, ele embarcou em um projeto aparentemente regressivo. Afinal, quando foi a última vez em que o espectador de um talk show de fim de noite, comandando por um comediante, assistiu a uma conversa de uma hora sem interrupção para brincadeiras?

Ao mesmo tempo, "O Próximo Convidado Dispensa Apresentação" está plenamente adaptado aos novos tempos. O programa de Letterman não precisa mais ser visto no fim de noite (está disponível a qualquer momento) nem diante de um aparelho de TV.

Como observa Jason Zinoman, falando da TV americana pós-Letterman, "os talk show viraram uma compilação de partes, mais do que um conjunto unificado, e mais interessados em atingir nichos do que audiências de massa".

Os talk shows parecem lutar hoje em dia justamente para conseguir emplacar um vídeo "viral" na internet –um instante inusitado, uma boa piada, uma palhaçada, qualquer coisa que mantenha o apresentador e o programa na lembrança do público.

"Todos eles buscam aquele um minuto que vai viralizar na internet. É a busca de todos. Isso faz muita diferença", me disse Fábio Porchat, apresentador de um talk show na Record, após visitar a produção de alguns programas americanos, no início de 2017.

Porchat citou uma entrevista que fez com Ronnie Von para ilustrar o impacto que a internet pode ter sobre um talk show. "Foi mal na TV, deu 3 pontos (no Ibope), mas um quadro viralizou. As pessoas dizem: 'Foi a melhor entrevista'. Mas elas não viram na TV".

Quem sabe a volta de Letterman não anima Jô Soares, outra lenda da velha guarda dos talk shows, a fazer um retorno.

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