Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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Inspirada em visões messiânicas

Padilha não é boboca e sabe que a audiência global oferecida pela Netflix a 'O Mecanismo' ajuda a fixar uma versão sobre os acontecimentos retratados

Enrique Diaz e Selton Mello em cena da série 'O Mecanismo'
Enrique Diaz e Selton Mello em cena da série 'O Mecanismo' - Divulgação

Uma anedota antiga, e bem maldosa, dizia que as entrevistas de alguns diretores do Cinema Novo eram melhores do que os seus filmes. Com José Padilha acontece o contrário. As suas declarações costumam ser ainda piores do que alguns dos filmes e séries que dirigiu.

O caso mais recente é “O Mecanismo”. Questionado pelo repórter James Cimino sobre os erros factuais exibidos na tela, ele classificou a reclamação como “um debate boboca”. E nomeou como alvo um certo “público petista” que “está achando difícil negar todo o resto”.

“Essa turma não entendeu que a série é uma crítica ao sistema como um todo e não a esse ou àquele político ou a qualquer grupo partidário. Por isso se chama ‘O Mecanismo’. Assim, misturar falas ou expressões de um político-personagem que o público pode confundir quem falou não tem a menor importância, pois são todos parte do sistema”, explicou. 

“É esse mecanismo que queremos combater”, conclamou.

Ao repórter Gustavo Fioratti o diretor desenvolveu esta ideia. “É a lógica estruturante do sistema político brasileiro”, disse. “Isso significa que nosso sistema, em uma espécie de darwinismo inverso, elege sempre as piores pessoas. Quanto mais você se adapta ao mecanismo, mais chance você tem de ser eleito.”
As observações de Padilha eliminam qualquer dúvida, caso ainda restasse, sobre o personagem Marco Ruffo (Selton Mello), o narrador da série. 

Delegado da Polícia Federativa, afastado após ser diagnosticado com transtorno bipolar, ele é a grande cabeça por trás da investigação que vai resultar na Lava Jato e ajudará, mesmo à distância, a operação a avançar.

É Ruffo quem entende e enuncia o “mecanismo”. “É um sistema que se autoperpetua. Está em tudo. No macro e no micro. Não tem partido, não tem ideologia. Não existe esquerda ou direita. Isso elegeu todos, todos os presidentes até hoje. Quem não adere, não vinga. Tudo é o mecanismo.”

Esta é a ideia central da série da Netflix. Padilha tem todo o direito de defendê-la, mas não pode ignorar que, em ano eleitoral, está ajudando a propagar um discurso que é música para os ouvidos de quem busca espaço no cenário político com a bandeira do “sou contra tudo isso que está aí”.

A justificativa de que os erros factuais são um problema menor diante da ambição da série não combina com alguém cuja obra está ancorada em episódios da realidade do país (“Ônibus 174”, “Tropa de Elite”) e da América Latina (“Narcos”).

Padilha não é “boboca” e sabe que a audiência global oferecida pela Netflix a “O Mecanismo” ajuda a fixar uma versão sobre os acontecimentos retratados.

A advertência de que se trata de “uma obra de ficção inspirada livremente em eventos reais” tem dupla função. É, claro, uma defesa prévia do direito de livre expressão artística. Mas é, também, uma poderosa ferramenta de marketing. No competitivo mercado audiovisual, as histórias “baseadas em fatos reais” ocupam um lugar cada vez mais especial em todo o mundo.

Não vou entrar no mérito dos problemas artísticos de “O Mecanismo”. Meus colegas Andre Barcinski, no UOL, e Cristina Padiglione, em seu blog, na Folha, já escreveram, com propriedade, a respeito. 
Pelo seu timing e pelas reações que causou, a série de Padilha é um programa obrigatório, mas deve ser apreciada com um pé atrás. O discurso messiânico de Ruffo, defendido pelo engajado cineasta, não costuma render boas soluções.
 

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