Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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Mauricio Stycer

Séries folheadas a ouro

'La Casa de Papel' e 'Samantha!' chamam a atenção pela falta de ambição

Espécie de Grilo Falante da indústria de TV americana, John Landgraf, principal executivo do canal FX, há anos tem feito contrapontos importantes ao entusiasmo com a chamada era de ouro. Já em 2014, ele manifestava preocupação com o número crescente de séries sendo produzidas.

Na sua visão, o desejo de agradar aos mais diversos nichos de audiência implicava um risco. "A fragmentação se torna tão grande que a capacidade de manter e alimentar esses programas sob a perspectiva financeira fica comprometida", disse.

"Estamos provavelmente chegando bem perto do final da curva de crescimento."

A previsão ainda não se concretizou e a produção segue com a curva apontando para cima. Segundo números fornecidos pelo próprio executivo no início de agosto de 2018, neste ano já houve o lançamento de 319 novas séries nos Estados Unidos, um aumento de 5% em comparação com o mesmo período do ano passado, quando foram lançados 305.

Quem contribuiu para o crescimento foram os serviços de streaming, como Netflix, Amazon e Hulu, cuja oferta de novas séries saltou de 52 para 76, e os chamados canais a cabo premium, como a HBO, que foram de 19 para 27. Houve pequena redução na oferta das grandes redes e dos canais a cabo básicos.

Ao citar estes números, Landgraf sugeriu que, além dos riscos ao negócio, de uma maneira geral, este crescimento na produção implica em queda de qualidade. "O número de novas séries que eu vi anunciadas nesta semana me faz suspeitar que a era de ouro (golden age) da televisão se tornou a era dourada (gilded age) da televisão", disse.

O executivo citou uma observação do cineasta e roteirista Paul Schrader, de que existiria hoje uma "exaustão da narrativa", para afirmar que esta profusão de séries é um troféu em matéria de variedade, "mas é muito difícil se você está falando sobre tentar surpreender e encantar o público."

Eis o ponto central da questão. É visível o rebaixamento da ambição dos produtores de conteúdo em nome do alargamento do mercado, e a cada novo lançamento chama a atenção o esforço de afagar o espectador com facilidades variadas.

Falando especificamente da Netflix, que tem puxado a corda da produção, é nítido como a empresa está se dobrando aos números de consumo de suas séries. Falo, por exemplo, do anúncio de que haverá em 2019 uma terceira temporada de "13 Reasons Why" —não havia história nem para uma segunda.

O mesmo vale para a decisão de produzir a toque de caixa uma nova temporada da convencional "La Casa de Papel". Produção original de um canal espanhol, ela ganhou nova embalagem ao ser adquirida pela Netflix: os seus 15 episódios de 70 minutos foram fatiados e viraram 21, mais curtos. Esta nova apresentação deve ter ajudado a tornar a ficção sobre um rocambolesco assalto à Casa da Moeda da Espanha na série em língua não inglesa mais vista do serviço.

Um dos mais recentes investimentos da Netflix no Brasil chama igualmente a atenção. Trata-se de "Samantha!", cujo lançamento também foi logo seguido do anúncio de segunda temporada. Famosa como cantora infantil na década de 1980, a protagonista sonha nos dias atuais em reviver os bons tempos.

Apesar da excelente ideia, a ficção deixa muito a desejar em matéria de roteiro, produção e realização. Na dúvida entre rir da indústria do entretenimento ou afagar os espectadores nostálgicos, o resultado parece frágil, superficial e sem rumo —uma série folheada a ouro, como diria o outro.

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