Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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Mauricio Stycer

Um estranho no ninho

Autor americano analisa a originalidade de Luiz Fernando Carvalho na TV brasileira

Uma das características da chamada era de ouro da TV americana, vivida nesses últimos 20 anos, é o poder atribuído ao "showrunner". O termo designa o responsável por todas as etapas da produção de uma série, com direito a interferir do roteiro à edição final, passando pela escalação do elenco e pela direção.

Como mostra Brett Martin no livro "Homens Difíceis" (Aleph, 2015), o "showrunner" encarna a figura do Autor, com maiúscula, tal como no bom cinema —o tipo capaz de deixar a sua marca mesmo em processos altamente industriais.

Figuras como David Chase ("Família Soprano"), Vince Gilligan ("Breaking Bad") e Matthew Weiner ("Mad Men"), entre outros, conquistaram esse status na década passada e, de alguma maneira, influenciaram o fluxo de grandes nomes consagrados no cinema em direção a trabalhos na TV (Martin Scorsese é o maior exemplo em uma lista enorme).

Na TV brasileira, não existe a figura do "showrunner". Impulsionada pelas boas audiências das novelas desde os anos 1960, a teledramaturgia nacional se estabeleceu em bases muito industriais. A necessidade de produzir, para exibição diária, folhetins com 150 ou 200 capítulos dificultou o surgimento de profissionais com o grau de autonomia e poder criativo que se vê hoje na indústria de séries americanas.

Nesse modelo brasileiro, o autor de novelas conseguiu conquistar alguma proeminência, enquanto os diretores se tornaram, mal comparando, chefes de fábricas --cada um com seu estilo de comandar, mas sempre dentro de um mesmo modo de produção.

Há exceções, claro, tanto no passado quanto no presente. Dentre todos os diretores que conseguiram imprimir uma marca autoral na teledramaturgia, nenhum se destacou como Luiz Fernando Carvalho.

Por 30 anos na Globo, entre 1988 e 2017, Carvalho realizou trabalhos originais marcantes, como as séries "Os Maias", "Hoje É Dia de Maria", "A Pedra do Reino", "Afinal, o que Querem as Mulheres?", "Subúrbia", "Alexandre e Outros Heróis" e "Dois Irmãos". Mesmo quando dirigiu novelas, deixou uma marca, como em "O Rei do Gado", "Renascer", "Meu Pedacinho de Chão" e "Velho Chico".

O lugar de Carvalho no campo da produção de TV e, em especial, dentro da Globo é o tema de "Reimagining Brazilian Television" (University of Pittsburgh Press, 286 págs., US$ 28,95, cerca de R$ 110, na Amazon), do americano Eli Lee Carter, professor de português na Universidade da Virgínia.

Trata-se, até onde eu sei, do primeiro livro inteiramente dedicado ao trabalho de Carvalho --ainda que muito estudado em universidades brasileiras, o diretor ainda não foi o objeto central de nenhum livro publicado em português.

Na visão de Carter, a obra de Carvalho derruba "as falsas fronteiras" que definem cinema como arte e televisão como entretenimento de massa. Ao impor suas visões estéticas, na contracorrente do naturalismo, bem como um modo de produção mais artesanal e pessoal, ele conseguiu colocar a figura do diretor no centro do processo criativo da Globo, além de transferir prestígio à emissora.

Repleto de reflexões inspiradas, a respeito, por exemplo, do nacionalismo de Carvalho e de sua sensibilidade estética, o livro inclui também críticas pontuais, como à representação dos negros em "Subúrbia".

"Reimagining Brazilian Television" foi concluído antes do rompimento do contrato de Carvalho com a Globo, em fevereiro de 2017. Anunciado como feito "em comum acordo", o distrato sinalizou, mesmo que involuntariamente, um passo atrás da emissora no interesse por produzir conteúdo original e de qualidade.

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