Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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Programas policiais acham que devem acumular o papel de polícia e de juiz

Decisão judicial que condenou Record e Luiz Bacci a pagar indenização expõe o que essas atrações têm de pior

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Em abril de 2018, um homem foi preso em Ferraz de Vasconcellos, na região metropolitana de São Paulo, sob a suspeita de matar a enteada de dois anos.

Ao relatar a notícia, o Cidade Alerta, da Record, estampou a legenda: "Garotinha vítima do padrasto cruel".

Ao longo de cinco minutos, entrevistados acusaram o homem de cometer crime, responsabilizando-o inclusive por violência sexual contra a vítima.

Ao final, o apresentador Luiz Bacci declarou: "Agora, me digam: existe lei para punir um monstro como esse nesse país? Existe alguma lei que vá fazer justiça pela morte dessa menina? Se realmente esse padrasto for condenado pelo assassinato, tem que ser no mínimo prisão perpétua, porque em qualquer outro país, principalmente os com tolerância zero, era morte na certa".

Luiz Bacci, apresentador do Cidade Alerta - Instagram/luizbacci

Um laudo necroscópico revelou posteriormente que a menina morreu em consequência de uma grave infecção pulmonar.

Os hematomas encontrados no dia da sua internação teriam sido causados por uma queda durante uma convulsão.

Na ação de indenização por danos morais, o homem conseguiu, em primeira instância, que a reportagem fosse excluída da internet.

Na semana passada, em segunda instância, o Tribunal de Justiça de São Paulo condenou a Record e Luiz Bacci a pagarem R$ 50 mil a título de indenização.

O mais interessante no caso é a aula de jornalismo dada pela relatora do processo, a desembargadora Marcia Dalla Déa Barone.

Ela observa que o Cidade Alerta foi muito além do dever de informar, que é um princípio garantido pela Constituição. Concordo, o caso não se reduz a uma discussão sobre liberdade de imprensa.

"A reportagem não teve o objetivo de informar, mas conduziu o público a formar uma imagem pejorativa sobre o autor", diz a desembargadora.

"A notícia não teve o intuito de relatar uma investigação, mas sim intuito sensacionalista, tirando o autor da posição de suspeito de crime para promovê-lo a acusado", observa.

E acrescenta que a imprensa não tem "o direito de insultar de modo inconsequente, em violação a direitos atribuídos à pessoa, de modo que a notícia não poderá expor pessoas à repulsão pública".

A avaliação da desembargadora vai no nervo do que programas como o Cidade Alerta tem de pior e mais nefasto. Ela percebe o poder da edição, que reúne uma série de depoimentos sem base factual para construir a imagem negativa do suspeito e transformá-lo no que o apresentador vai chamar de "monstro".

Esse trabalho da edição busca sensibilizar o espectador, provocando sentimentos variados que vão da piedade ao desejo de vingança. É uma receita perfeita, que leva ao diagnóstico moralista e catártico do apresentador.

Programas policiais entendem que cabe a eles acumular o papel de polícia e de juiz, instigando a solução de crimes e apresentando o que esperam do julgamento dos criminosos.

Atrações desse tipo não fazem bem nunca, mas no momento atual, creio, são ainda piores. Basta um "passeio" pelas redes sociais para ver como proliferam mensagens de enaltecimento à violência.

Em julho deste ano, um homem acusado de um crime bárbaro foi assassinado com sete tiros horas depois de a sua imagem ser exibida no Cidade Alerta. O apresentador chegou a dizer: "Por favor, não façam justiça com as próprias mãos. Até porque ele é investigado".

Como não tenho muita esperança que os programas vespertinos policiais se tornem mais responsáveis, resta elogiar quem pode cobrá-los pelas consequências dos seus atos.

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