Gilda (Karine Teles) é um espírito livre. É feliz no trabalho, nas relações de amizade, nos cultos de matriz africana que frequenta. Tem vários parceiros sexuais e nenhum deles reivindica exclusividade. Adora cozinhar. Está sempre vestida com cores alegres, expõe o corpo sem pudor.
Mais importante, Gilda é assim, mas não espera que ninguém seja como ela. Vive sua vida e não quer saber da vida de ninguém na vila suburbana onde mora, no Rio de Janeiro.
Mas a vizinha Cacilda (Julia Stockler), terrivelmente evangélica, como diria o presidente Bolsonaro, enxerga Gilda como uma ameaça. Irrita-se com os gritos de prazer que chegam aos seus ouvidos em qualquer hora do dia. Teme perder o marido, Ismael (Igor Campanaro), que trabalha como pedreiro erguendo um muro entre as duas casas.
O conflito que conduz “Os Últimos Dias de Gilda” se intensifica a partir de duas ramificações da história. De um lado, o pastor do bairro convence Ismael a disputar uma eleição. De outro, uma nova milícia se estabelece na área, impondo lei, ordem e respeito à Bíblia.
Fiel a seu estilo de vida, Gilda lamenta a decisão de Ismael, mas não faz nada para que ele mude de ideia; apenas se recusa a colar um cartaz com a foto do candidato em sua porta. Vai pagar um preço por isso, assim como vai sentir na pele os danos causados pela intolerância religiosa.
Em quatro episódios, a série criada e dirigida por Gustavo Pizzi (dos filmes “Benzinho” e “Riscado”) é inspirada em um monólogo teatral homônimo de Rodrigo de Roure, encenado pela primeira vez em 2004.
Teles viveu a personagem no teatro e, ao lado de Pizzi, assina o roteiro da adaptação para a TV.
Exibida em novembro do ano passado no Canal Brasil, a série está disponível no Globoplay e, na semana passada, foi selecionada para exibição no Festival de Berlim. É a primeira vez que uma produção brasileira neste formato é escolhida pelo evento.
A série paga um pequeno pedágio por ser a adaptação de um monólogo. Não tem o ritmo acelerado de quem consome televisão distraído. Cartelas com textos surgem em cena para complementar ideias ou situações. E há um descompasso entre a maior parte da narrativa, crua e dura, e o final com sabor utópico.
Ainda assim, ou justamente por isso, “Os Últimos Dias de Gilda” se destaca muito no panorama atual da produção brasileira para televisão e serviços de streaming. Karine Teles está espetacular, assim como Julia Stockler. A simplicidade da produção não atrapalha em nada a história. E Gilda dá o seu recado.
A série de Gustavo Pizzi oferece um contraponto interessante à novela “Gênesis”, que a Record estreou em 19 de janeiro. É o sétimo folhetim inspirado em temas bíblicos, desde “Os Dez Mandamentos”, de 2015.
A trama está dividida em fases. Já foram ao ar “Adão e Eva”, “Caim e Abel” e “O Dilúvio”. Esta semana está sendo exibida a história da “Torre de Babel”. Como em quase todas as adaptações religiosas da emissora, a mulher exerce papel secundário e submisso, ou caricato. E a revolta contra o machismo, quando ocorre, mostra a novela, também não é uma solução.
Não é possível uma sociedade sem homens no comando, ensina “Gênesis”, e Deus castiga os que optam por uma vida de prazeres, em oposição à exigida contrição.
O que me parece mais digno de nota é o fato de que após algumas novelas com baixa audiência, a Record reencontrou números bem satisfatórios com “Gênesis”, na casa dos 15 pontos em São Paulo (cada ponto equivale a 205 mil domicílios). Há muita gente disposta a ouvir o recado de Deus neste momento.
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