Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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Série 'Os Últimos Dias de Gilda' trata de milícia e intolerância religiosa

Selecionada para o Festival de Berlim, produção oferece um contraponto interessante à novela 'Gênesis', da Record

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Gilda (Karine Teles) é um espírito livre. É feliz no trabalho, nas relações de amizade, nos cultos de matriz africana que frequenta. Tem vários parceiros sexuais e nenhum deles reivindica exclusividade. Adora cozinhar. Está sempre vestida com cores alegres, expõe o corpo sem pudor.

Mais importante, Gilda é assim, mas não espera que ninguém seja como ela. Vive sua vida e não quer saber da vida de ninguém na vila suburbana onde mora, no Rio de Janeiro.

Mas a vizinha Cacilda (Julia Stockler), terrivelmente evangélica, como diria o presidente Bolsonaro, enxerga Gilda como uma ameaça. Irrita-se com os gritos de prazer que chegam aos seus ouvidos em qualquer hora do dia. Teme perder o marido, Ismael (Igor Campanaro), que trabalha como pedreiro erguendo um muro entre as duas casas.

Karine Telles em cena da minissérie 'Os Últimos Dias de Gilda'
Karine Telles em cena da minissérie 'Os Últimos Dias de Gilda' - Divulgação

O conflito que conduz “Os Últimos Dias de Gilda” se intensifica a partir de duas ramificações da história. De um lado, o pastor do bairro convence Ismael a disputar uma eleição. De outro, uma nova milícia se estabelece na área, impondo lei, ordem e respeito à Bíblia.

Fiel a seu estilo de vida, Gilda lamenta a decisão de Ismael, mas não faz nada para que ele mude de ideia; apenas se recusa a colar um cartaz com a foto do candidato em sua porta. Vai pagar um preço por isso, assim como vai sentir na pele os danos causados pela intolerância religiosa.

Em quatro episódios, a série criada e dirigida por Gustavo Pizzi (dos filmes “Benzinho” e “Riscado”) é inspirada em um monólogo teatral homônimo de Rodrigo de Roure, encenado pela primeira vez em 2004.

Teles viveu a personagem no teatro e, ao lado de Pizzi, assina o roteiro da adaptação para a TV.

Exibida em novembro do ano passado no Canal Brasil, a série está disponível no Globoplay e, na semana passada, foi selecionada para exibição no Festival de Berlim. É a primeira vez que uma produção brasileira neste formato é escolhida pelo evento.

A série paga um pequeno pedágio por ser a adaptação de um monólogo. Não tem o ritmo acelerado de quem consome televisão distraído. Cartelas com textos surgem em cena para complementar ideias ou situações. E há um descompasso entre a maior parte da narrativa, crua e dura, e o final com sabor utópico.

Ainda assim, ou justamente por isso, “Os Últimos Dias de Gilda” se destaca muito no panorama atual da produção brasileira para televisão e serviços de streaming. Karine Teles está espetacular, assim como Julia Stockler. A simplicidade da produção não atrapalha em nada a história. E Gilda dá o seu recado.

A série de Gustavo Pizzi oferece um contraponto interessante à novela “Gênesis”, que a Record estreou em 19 de janeiro. É o sétimo folhetim inspirado em temas bíblicos, desde “Os Dez Mandamentos”, de 2015.

A trama está dividida em fases. Já foram ao ar “Adão e Eva”, “Caim e Abel” e “O Dilúvio”. Esta semana está sendo exibida a história da “Torre de Babel”. Como em quase todas as adaptações religiosas da emissora, a mulher exerce papel secundário e submisso, ou caricato. E a revolta contra o machismo, quando ocorre, mostra a novela, também não é uma solução.

Não é possível uma sociedade sem homens no comando, ensina “Gênesis”, e Deus castiga os que optam por uma vida de prazeres, em oposição à exigida contrição.

O que me parece mais digno de nota é o fato de que após algumas novelas com baixa audiência, a Record reencontrou números bem satisfatórios com “Gênesis”, na casa dos 15 pontos em São Paulo (cada ponto equivale a 205 mil domicílios). Há muita gente disposta a ouvir o recado de Deus neste momento.

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