A televisão brasileira entrou numa nova era nesta semana com a decisão do canal Viva de incluir uma advertência aos espectadores ao final de cada capítulo das novelas que exibe: “Esta obra reproduz comportamentos e costumes da época em que foi realizada”.
Chamada pelo Viva de “cartela de contexto de época”, a mensagem será exibida também ao final de todos os demais programas exibidos pelo canal.
No ar desde maio de 2010, exibindo reprises de programas da Globo, o Viva frequentemente ocupa o primeiro lugar no ranking dos canais mais vistos na TV por assinatura no Brasil.
Por que só agora, depois de quase 11 anos no ar, a empresa tomou essa iniciativa? Ainda não está claro.
Numa nota enviada à imprensa na terça-feira (20), o Viva observou que os programas que exibe são “um retrato da sociedade que evolui —e de uma Globo que evolui junto com ela”.
A motivação explícita para a inclusão da cartela foi a estreia de “Da Cor do Pecado”, uma novela de João Emanuel Carneiro, exibida originalmente em 2004. O título reproduz um chavão antigo, de cunho racista, que associa mulheres negras a sensualidade e sexo.
O incômodo com o clichê racista do título foi apontado na época, mas a Globo fingiu não ouvir. Aqui mesmo na Folha, o jornalista Vinicius Torres Freire registrou, inconformado: “Por que ainda em 2004 alguém recorreria sem mais a chavões como ‘cor do pecado’?”.
“Talvez a tolerância com a estupidez, a convivência naturalizada com miríades de preconceitos ou a indiferença estupidificada das pessoas que vivem diante da televisão permitam que o preconceito e outras grossuras do espírito circulem à vontade, sem que ninguém note”, escreveu.
Trata-se da primeira novela da Globo a ter uma protagonista negra (Taís Araujo) e apresenta como tema principal um romance inter-racial, entre a personagem dela e o de Reynaldo Gianecchini. A atriz vive Preta, uma moça negra e pobre criada no Maranhão, e ele é Paco, um jovem branco, rico, criado no Rio de Janeiro.
Curiosamente, Carneiro deu entrevistas na época dizendo que não tinha a intenção de discutir racismo na novela: “Não estou fazendo uma coisa sociológica. Estou contando a história de dois personagens. A história de amor entre Paco e Preta. Não é o meu objetivo criar polêmica”.
Acho positiva a inclusão da “cartela de contexto de época”, mas que ela não sirva apenas para a Globo “lavar as mãos” e dizer que “as coisas eram assim” no passado. É importante olhar para trás com disposição de encarar os erros e falar deles no presente.
A Globo enxerga o enorme valor do seu acervo, em particular das novelas antigas. Além da exibição contínua no Viva, acelerou o processo de oferta de títulos no Globoplay, o seu serviço de streaming.
Seria importante que a empresa, além de exibir a cartela, tratasse do assunto abertamente com os espectadores. Explicar por que está fazendo essa advertência, quais são os problemas de cada novela e por que não aceitamos eles hoje. Isso sim seria o retrato de uma sociedade que evolui.
Essa tem sido a atitude de alguns produtores em outros países. Em junho do ano passado, por exemplo, na esteira dos protestos contra a violência policial e racial nos Estados Unidos, a plataforma de streaming HBO Max chegou a retirar do catálogo o filme “... E O Vento Levou”, de 1939. Dias depois, o canal recolocou o filme no ar, mas antecedido de uma breve aula sobre o seu contexto histórico.
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