Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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'Vosso Reino' faz lembrar facada em Bolsonaro e nomeação de Damares

É surpreendente que nada parecido com a série argentina tenha sido produzido nos últimos anos no Brasil

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Ainda restrita à Argentina, a polêmica causada por “Vosso Reino” mostra que sempre há gente disposta a vestir a carapuça diante da ficção, mesmo a mais delirante (contém ironia).

Mal a série começa, um candidato à Presidência, um empresário que representa o credo liberal, leva uma facada durante um ato político e esse atentado muda a história da campanha eleitoral. O candidato a vice, na mesma chapa, é um pastor neopentecostal popular, que defende uma plataforma de valores retrógrados.

Subornando um aqui, matando outro acolá, um assessor político movimenta-se nas sombras, aparentemente orientado por americanos, para assegurar que os planos de eleger uma chapa afinada com os interesses do empresariado sigam nos trilhos. A associação com a direita religiosa é vista por ele como um mal menor e, aparentemente, sob controle.

Ao longo dos oito capítulos da primeira temporada, a série traça um retrato da denominação religiosa que se envolve na eleição presidencial. A carga é pesada e inclui dólares abençoados, exorcismos encenados e abuso sexual.

Elena —papel de Mercedes Morán— teme que a incursão do marido Emilio —Diego Peretti— prejudique a igreja que criaram —“Querido, a única garantia de crescimento para a nossa igreja são os deputados e senadores que aprovam as leis que gostamos e boicotam as que desaprovamos. Não precisamos de ninguém na presidência”, ensina.

Lançada no início de agosto, a série é a primeira incursão do cineasta Marcelo Piñeyro —de “Plata Quemada” e “Kamchatka”— neste formato de ficção. Ele é também coautor do roteiro com Claudia Piñeiro.

Uma entidade que congrega igrejas evangélicas argentinas viu em “Vosso Reino” uma tentativa de “criar no imaginário popular a percepção” de que seus pastores “só têm ambições de poder ou de dinheiro”, com o objetivo de “segregar e designar como perigosos e fundamentalistas” seus fiéis.

A série gerou pedidos de boicote à Netflix. Diante da reação, a dupla de autores da trama, Marcelo Piñeyro e Claudia Piñeiro, se manteve firme.

“O que fazemos é denunciar igrejas evangélicas que manipulam a sociedade para impor políticas conservadoras e tirar os direitos dos cidadãos”, disse Marcelo Piñeyro ao diário Página 12. Mas ele lembrou que, apesar de inspirada em dados da realidade, a série é uma ficção, com uma igreja e um candidato de direita inventados.

Os roteiristas tinham Trump e outros luminares do conservadorismo contemporâneo em mente, mas garantem que já haviam escrito a cena da facada antes do atentado sofrido por Bolsonaro. E já tinham imaginado a nomeação de uma pastora para o Ministério da Mulher antes de Damares Alves ser escolhida para um cargo semelhante no Brasil.

Assistindo ao que se passava no país vizinho enquanto terminavam de escrever a série, Claudia Piñeiro disse: “Pensamos que tínhamos que nos apressar com o roteiro porque a realidade estava batendo em nossos calcanhares”.

Nesta sexta-feira (27), a Netflix anunciou a encomenda da segunda temporada. O final aberto da primeira era um indicador óbvio de que a história não terminou, mas o serviço de streaming poderia, como já ocorreu em outras situações, ter se dobrado às pressões, o que não ocorreu, felizmente.

Ainda que muitas vezes pegue a estrada do mirabolante e solucione alguns conflitos de forma primária, o roteiro de “Vosso Reino” tem a coragem de imaginar o pior cenário possível, o pesadelo de quem teme um regime de inspiração teocrática. É surpreendente que nada parecido tenha sido produzido nos últimos anos no Brasil.​

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