Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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Filmes são 'Big Brother' da vida dos Beatles e dos jogadores do Botafogo

Lógica do reality show invade universo da música e do futebol, sempre oferecendo algo não programado diante das câmeras

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Sei que pode parecer estranho misturar Beatles e Botafogo numa coluna dedicada aos assuntos da televisão, mas essas duas instituições estão em evidência no momento por um motivo semelhante: são objeto de documentários indiscretos, eventualmente intrusivos, com características de reality show.

No caso dos Beatles, "Get Back" (Disney+) é um documentário surpreendente e extraordinário, que registra momentos de gênio criativo verdadeiramente emocionantes.

Dividido em três episódios, num total de quase oito horas, o programa dirigido por Peter Jackson ("O Senhor dos Anéis") se baseia integralmente num conjunto de 60 horas de imagens e 130 horas
de áudio
produzidas durante 22 dias, em janeiro de 1969.

Esse material deu origem, na época, a "Let It Be", um filme que soma 80 minutos, dirigido por Michael Lindsay-Hogg e lançado pouco depois da dissolução do grupo, em 1970.

Ao serem retiradas do cofre da Apple, empresa criada pelos Beatles, as imagens e os áudios originais foram submetidos a tratamento e, mais importante, a depuração.

Os quatro Beatles tentaram evitar, durante as gravações, que algumas conversas entre eles fossem registradas pelas câmeras. Para isso, aumentavam o volume dos amplificadores e tocavam guitarras. São conversas privadas. "Eles falam, mas na fita você só ouve barulho. Você vê, mas não consegue ouvir", disse Jackson, em entrevista ao site G1.

"Ensinamos a um computador como é o som de uma guitarra e então falamos para ele se livrar da guitarra. E isso é tudo feito com inteligência artificial no computador. E agora nós ouvimos as conversas. A guitarra se foi", revelou.

Outro expediente, utilizado por Lindsay-Hogg em 1969, e aproveitado agora por Jackson, foi esconder microfones dos Beatles. Essa transgressão ética permitiu o registro de uma conversa íntima entre John Lennon e Paul McCartney, no qual discutem o relacionamento, que está estremecido, e as dificuldades
no processo criativo.

É óbvio que os envolvidos e os seus herdeiros aprovaram, no presente, a exibição das intrusões cometidas no passado e nos dias atuais. E é possível dizer que isso foi feito em nome da história da música. Entendemos melhor hoje, graças a "Get Back", por que os Beatles se separaram.

Mas não é possível ignorar que tudo isso foi feito, também, em nome do (nosso) entretenimento. Da mesma forma, algumas longas sequências de ensaios, em que pouco ou nada acontece, são prazerosas de assistir porque põem o espectador dentro do estúdio, numa posição em que ele se habituou a estar, nas últimas duas décadas, graças aos reality shows.

De forma semelhante, "Acesso Total: Botafogo", em exibição no SporTV, transporta o público para dentro do vestiário dos jogadores e da sala do diretor do clube, ambientes geralmente vedados à presença de estranhos.

No terceiro episódio (são oito), uma câmera instalada perto do teto registra uma cena raríssima, talvez inédita, a comunicação feita por Eduardo Freeland ao técnico Marcelo Chamusca da sua demissão. No quarto, vemos quatro cartolas sendo treinados antes de darem uma entrevista —e eles cumprem rigorosamente as instruções do assessor.

O formato já havia sido experimentado pelo canal num programa de cinco episódios sobre o Corinthians.

A inspiração talvez seja o inglês "Sunderland Até Morrer", lançado pela Netflix em 2018. Todos obedecem ao princípio do acesso consentido, o que às vezes resulta em cenas artificiais. Mas sempre acabam oferecendo, como sabem os fãs de "Big Brother" e outros programas do gênero, algo a mais, não programado.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior desta coluna referiu-se incorretamente a Eduardo Freeland como André Freeland.

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