Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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Mauricio Stycer
Descrição de chapéu mostra de cinema

Passos de Flavio Migliaccio resumem sonhos e desilusões de uma geração

Documentário recupera carreira do ator morto em 2020, que foi do Teatro de Arena a diversos sucessos na televisão

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Flavio Migliaccio (1934-2020) atua em uma cena clássica de "Terra em Transe" (1967), de Glauber Rocha. Em um comício alegórico, ele fala depois dos discursos do sindicalista Jerônimo —José Marinho— e do jornalista Paulo Martins —Jardel Filho. Diz: "Com a licença dos doutores, o seu Jerônimo faz a política da gente, mas o seu Jerônimo não é o povo. O povo sou eu, que tenho sete filhos e não tenho onde morar".

Esta cena possivelmente inspirou a escolha do título do documentário "Migliaccio, o Brasileiro em Cena", mas a ligação umbilical do ator com a história recente do país vai muito além. Ele atuou no Teatro de Arena na década de 1950, no Cinema Novo nos anos 1960 e na Globo nas décadas seguintes, onde participou de mais de 30 novelas, programas de humor, séries, infantis e especiais.

Migliaccio encarna, como muitos de sua geração, os sonhos e os desencantos dos que acreditaram no poder transformador da cultura. Em 86 minutos, o documentário reconstitui a trajetória sem glamour do ator. "Eu fiz todos os papéis que me mandaram fazer da melhor forma possível. Fiz papel de árvore, galinha, de pato, de minhoca", conta em depoimentos gravados nos últimos anos de vida.

O sucesso, que o perturbou, veio na TV, nos anos 1970, com dois personagens voltados para o público infantil. Primeiro, o impagável Xerife, em dupla com Shazan —Paulo José. E depois como Tio Maneco, protagonista de um programa na TV Educativa e numasérie de filmes de aventura.

Mais de 400 episódios de "As Aventuras do Tio Maneco" foram apagados na TVE. Migliaccio entrou na Justiça com um pedido de indenização e só depois de sua morte alcançou uma primeira vitória.Nada mais brasileiro.

O documentário exibe trechos de 13 filmes em que atuou, do pioneiro "Cinco Vezes Favela" (1962) à pornochanchada "Com Minha Viúva Não!" (1978). Mas não há nenhum fragmento de "Os Mendigos", que ele próprio dirigiu em 1962. A única cópia existente está na Cinemateca Brasileira, "onde não conseguimos nenhum contato para retirar e usar na obra sobre o Flavio", protestam os produtores nos créditos de encerramento.

Migliaccio nasceu em São Paulo e foi criado com outros dez irmãos. "Comecei como engraxate. Meu pai fez uma caixa e disse: ‘meu filho, vai ganhar um dinheirinho’", conta. Passou por colégio interno, de onde foi expulso após um padre colocar a mão na sua perna. "Dei um pisão nele." Antes de "viver da arte de representar", com gostava de dizer, tentou ganhar a vida como mecânico e pedreiro.

O documentário capta a decepção, no final da vida, com a situação do país. "A gente está vivendo uma época muito braba, muito difícil", diz. "Sinto necessidade de criar novos personagens, de viver um pouco fora da realidade. Sei que isso é triste porque o objetivo do ser humano é interferir na realidade, melhorar a realidade, mas eu cansei um pouco".

No bilhete de despedida, encontrado no seu sítio, em Rio Bonito, no Rio de Janeiro, onde morreu, Migliaccio escreveu: "Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este". Impressão errada, muito errada, como o documentário trata de mostrar.

As palavras no bilhete refletem o estado de depressão profunda em que se encontrava. Poucos anos antes, Migliaccio já sinalizava, mas com humor, esse desfecho: "Uma pessoa com 80 anos, sem medo de morrer e não acreditando em Deus, tem que ter muita coragem, eu acho. Não é isso? E eu tenho essa coragem".

Migliaccio, o Brasileiro em Cena

  • Onde Disponível nas plataformas de streaming
  • Classificação 14 anos
  • Produção Brasil, 2021
  • Direção Alexandre Rocha, Marcelo Pedrazzi e João Mariano

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